10 de novembro de 2010

a escada

Minha avó costumava dizer que o Grand Papa caiu da escada.

- Ele caiu da escada! Caiu da escada, o coitadinho. Grand Papa, com todo aquele conhecimento, aquelas mãos de artista, morreu de um jeito tão bobo...

Minha avó não falava a palavra “besta”, como eu teria dito, ao me referir à morte tão besta de meu trisavô, o finado Sisson. Aliás, essa era uma das muitas palavras que ela se recusava a dizer, por achar “feia”, desconjuntada, desafinada, inapropriada. A fealdade não combinava com ela. Por isso, em muitas de suas histórias pela vida, Mariazinha preferiu deixar as palavras pouco belas de lado.

Grand Papa, esse não havia conhecido de encostar com a mão. Um lamento que teve que carregar pela vida inteirinha, de tanto que o admirava. Quando nascera, em 1910, já não existia mais seu avô. Também, pudera. Mariazinha veio ao mundo temporã. Sua mãe, imagine, às vésperas de completar quarenta anos, naquela época em que as mulheres de quarenta se resignavam, uma vez que se entregassem, desde os trinta e cinco, ao conformismo com a velhice. Seu irmão mais velho, o Francisco, perto dos 20, já era militar e servia no Quartel-General do exército. Alberto, Alfredo e Ângela vinham em escadinha, na sequência. Assim, a pequena chegou, em meio a mimos e predestinada a crescer entre adultos. Tornou-se o eterno bebê da casa.

Em contrapartida, Mariazinha nunca se opôs a fazer jus aos suspiros encantados que a cercavam. Menininha linda, cheia de talentos e habilidades, repetia com graciosidade todas as quadrinhas que lhe ensinavam.

- Ah, Grand Papa!... Como foi que não o conheci! – dizia, com beicinho de muxoxo.

Era muito criança, a minha avó.

Não no sentido de quem padece de males das idéias, vindas com a idade. É que, apesar de avançada no tempo, tinha certas birras e desatavios juvenis. Nunca entendi muito bem as reações de Mariazinha.

Talvez Grand Papa não teria entendido também, pois Grand Papa, para mim, era apenas um vulto na História. Um homem francês e muito prático, artista dos bons, litogravurista, mas daqueles que vivem do ofício e trabalham duro nas encomendas que serão impressas em larga escala.

Lá em casa, à noite, sento-me à mesa que antes esteve na cozinha dela, da minha avó, para tomar a sopa que eu fiz. Penso no cheiro da comida de Mariazinha, no tempero, no filé de viola ensopado com molho de tomate que ela mesma fazia e ninguém, nunca mais, conseguirá fazer igual.

Grand Maman não teve morte besta. Sofreu, ainda que não soubesse disso. Depois, ela escapou ao meu tempo, no espaço. Roubaram Mariazinha de mim. Eu estava muito longe, em outro país, estudando. Ninguém me disse da morte dela. Pensaram que eu largaria tudo e me despencaria de lá para vê-la pela última vez. Sim, é isso o que eu teria feito, se tivessem me dado chance.

Por isso até hoje - que por agora faz mais de dez anos que ela se foi - digo que Grand Maman caiu da escada também. E esse é um vazio que a gente não preenche mais, dia nenhum, hora nenhuma na vida.

...

6 de outubro de 2010

dos vasos comunicantes

Acordei às 6h da manhã para ir ao dermatologista do outro lado da cidade. Cheguei lá às 7h15 e subi sozinha no elevador até o terceiro andar. No consultório, a atendente disse que meu nome não estava na lista, mas iria providenciar um encaixe. Esperei. Fui atendida às 7h55 e ainda fiquei mais vinte minutos aguardando um procedimento – o médico iria retirar uma bolinha minúscula que tinha aparecido debaixo do meu olho direito, há alguns anos. Apesar de ínfima, me chateava, a bolinha.

Depois que tudo terminou olhei para o relógio e apressei o passo. Queria chegar logo em casa. Apertei o botão do elevador. Entrei mas, menos de cinco segundos depois, a porta se abriu outra vez. Entrou um sujeito magrinho, de barbicha, com cara de office-boy da terceira idade. Dei um passo atrás. Ele se posicionou, calado.

O elevador desce, lentamente. Olho para o painel dos botões. Um visor marca a elevação da temperatura interna, de 28 para 29 graus.

“Que calor horrível está fazendo aqui dentro!” - pensei.

O painel acusa uma apertada estratégica de botões no primeiro andar. Vamos parando, mais devagar ainda, o que me leva a refletir, com os meus próprios botões.

“Já pensou ficarmos presos no elevador com esse calorão?”

O elevador para. A porta se abre.

Entra uma gordinha simpática, dessas sensuais, metida num tubinho preto e curto, de alcinhas. De cara, emplaca um sonoro

- Bom-dia!

Eu respondo.

- Bom-dia.

O office-boy continua mudo e imóvel.

O elevador desce.

- Que calor horrível está fazendo aqui dentro! – observa a gordinha.

Balancei a cabeça, achando graça.

- Já pensou ficarmos presos no elevador com esse calorão?

Eu sorri.

O elevador parou, descemos no térreo. Ela se precipitou, seguindo em natural disparada à minha frente. Quando olhei para trás, a porta estava se fechando novamente.

E o sujeito da barbicha ali. Parado.

22 de setembro de 2010

uma casa muito engraçada

Finalmente, posso considerar-me mudada.

E, na casa nova, tudo tem um colorido sem cor. Apesar das paredes brancas, das portas brancas, das porcelanas brancas, dos azulejos brancos, enxergo as matizes alegres de uma vida reformulada.

Há de chegar muito em breve o tempo de pendurar os quadros.

O lustre da sala ainda não se materializou, o buraco continua ornamentando o teto, mas a luz preenche todos os vazios.

Os armários virão a ser, logo, logo – acredito! -, para aliviar as malas da sina das roupas.

Ainda que um cano esteja entupido, uma parede meio torta, o guarda-roupas velho e o vidro do box um tantinho arranhado, o meu lar tem me trazido as melhores soluções, que se farão cada vez mais por si mesmas, sem muita ajuda ou preocupação.

É um lugar de confluência de bem-querências que ronronam na tranqüilidade de três gatinhas felizes e no enlevo gostoso de um amor muito esperado.

Aqui sim, posso viver os dias. E bem.