31 de outubro de 2007

a gincana




















Não sabíamos ainda, mas ela estava começando, secretamente, naquele exato momento. Um cronômetro misterioso disparava a cada vez que os guias diziam “vocês têm quarenta minutos para visitar todos os monumentos, tirar fotos e almoçar. Nos encontramos aqui no ônibus”. Ainda por cima, eles falavam em portunhol. Ou, pior, em espaguês. Descobri. Era um código.

Um deles se chamava Jesús. “Aquele que me seguir, encontrará o caminho”. Em verdade vos digo: fiquei preocupada quando alguém comentou “Jesús está chamando”. E respondi: “é cedo. Não é chegada a hora”. Todos os guias tinham nomes de anjos. Miguel, Rafaela... Tudo bem que um se chamava Alejandro. Mas, por quê?

Comecei a desconfiar quando, ao chegar ao hotel, na primeira noite em Barcelona, liguei a tevê do quarto e começava, naquele segundo preciso, o primeiro capítulo da última temporada de Lost. E eu ainda não tinha visto. Foi bastante esclarecedor para mim.

Outros fatos enigmáticos continuaram a ocorrer, sucessivamente, naqueles dias. Minha mãe estava saindo de uma loja de departamentos no centro de Madri, às oito da tarde – é, oito lá é tarde –, as ruas tão lotadas que não dava pra ver o chão. Por minutos a perco. Procuro com os olhos, de meu mirante privativo e, ao distingui-la, de costas, casaco branco no meio da multidão, me aproximo e encontro o improvável: uma joaninha rechonchuda, caminhando tranqüila pela superfície de lã. Uma joaninha. Só podia ser um bônus.

Em todos os lugares aonde íamos, mal colocávamos o pé fora do ônibus turístico, sinos de igrejas badalavam. Acho que era um aviso da organização. Ou então, só colocávamos o pé fora do ônibus em horas cheias e meias.

Visitamos o Escorial, que é ao mesmo tempo mosteiro, igreja, palácio e túmulo de Felipe II da Espanha, erigido em homenagem a San Lorenzo “aquele que morreu na parilla” segundo a aparentemente inofensiva guia. Ela repetia a informação a cada minuto e fazia questão de mostrar as grelhas de churrasco representadas em detalhes da decoração. Muito revelador. Chegamos ao lindíssimo altar-mór quando soaram os acordes do órgão secular, obra-prima do gênero. A mulher virou-se para nós, solene, e disse: “incrível. Magnífico. Este órgão quase nunca é tocado”. E enfatizou: “quase nunca”.

Numa cidadezinnha chamada Évora, nossa primeira paragem em Portugal, nossos guias nos fizeram andar um bocado na companhia deles, para depois nos largar no meio de uma praça e condenar: "São quarenta e cinco minutos aqui. Vamos nos reencontrar lá no ônibus". Para o Minotauro seria moleza. As labirínticas ruelas nos conduziam a becos sem saída e lugar nenhum. Matei a charada. O lugar mais comentado pelos guias no caminho foi a tal Capela dos Ossos. É pra lá que nós vamos.

O nome "Capela dos Ossos" era literal. Na entrada, a mensagem de boas-vindas: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos". Maravilha. Minha mãe se sentiu mal lá dentro. Milhares de crânios, tíbias e perônios, rádios e cúbitos, costelinhas, carpos, metacarpos e falangezinhas, entre outros, davam o toque bizarro à decoração. Ouvi um sussurro com a voz de Jack Pallance no meu ouvido: "acredite... Se quiser".

Entre todas as experiências pouco convencionais, também não foi pouco estranho que eu e mamãe tenhamos sido expulsas do Oceanário de Lisboa no meio do passeio porque Vladimir Putin, presidente da Rússia, tinha ido visitar os peixinhos exatamente naquele dia, acompanhado de um exército da KGB – claro que ainda existe – que mais parecia os homens de preto, vestidos de terno e óculos escuros? Bem que quando chegamos achei esquisitos os barcos da polícia, o pessoal do serviço de inteligência portuguesa (ai, Jesús!), os helicópteros imensos e as metralhadoras carregadas pra todo lado. Peixinhos... Sei.

A última prova começou na Torre de Belém. Fomos severamente informados: “neste Café aqui ao lado há o único banheiro desse passeio de duas horas. O único. Depois não digam que eu não avisei...” Nesse instante, senti que foi dada a partida. “Vocês têm trinta minutos para conhecer a Torre, tirar fotos, e voltar para o ônibus a tempo para o Mosteiro dos Jerônimos. Ah! E não se esqueçam da sala de banhos...” Percebi um leve sarcasmo nessa frase final.

Antes da Torre, corri para o banheiro, afinal, ele era único e bem disfarçado. O monumento
eu já conhecia e ia ficar lá, pelos tempos afora, se mostrando pra todo mundo. Dava pra tirar uma foto de longe. De mais a mais, naquele momento específico, nada era mais monumental que o banheiro.

Na corrida descobri que o acesso era gratuito somente àqueles que tomassem pelo menos uma bica, ahn, café expresso. Droga! Filas enormes no balcão; meus concorrentes saíram na frente. Isso não vai ficar assim. Perguntando, descobri uma máquina que vendia fichas para uso exclusivo do troninho. Cinqüenta centavos. Cinqüenta centavos? Cadê essa moeda maldita? Vasculha, vasculha, vasculha!

Minha mãe veio salvar a pátria com um euro e direito a duas descargas consecutivas. Na hora de puxar a fichinha, veio um angolano correndo. “Não, não, não usem isso não!” Pronto. Mais surpresas da engenhosa competição. Que é que você quer? Aonde você vai? Volta aqui! Não usa por quê? Desgraçado. O angolano fugiu correndo de novo. Do jeito que a coisa está, acho que vou trapacear.

Funcionário do Café, ele volta logo, com uma ficha personalizada, encaçapa o euro mais que depressa e passa duas vezes o código de barras que libera a entrada. Entendi tudo. Decifrei a senha. Olhei para meus adversários na bicha, ahn, fila, e tive vontade de mostrar a língua. A peça final estava garantida. Mas nada se encaixava ainda.

Cumprimos todas as tarefas, com louvor. Ainda busco pelo prêmio, mas algo me diz que ele já está conosco. Estamos aqui: vivas, sãs e salvas, com todas as relíquias escondidas nas retinas e nas máquinas fotográficas.

14 de outubro de 2007

Odeio. Adoro.

Levantei de mau humor.

O telefone tocou às dez da manhã e, de repente, me dei conta de que já eram onze. Era a minha tia, querendo dar os parabéns. Odeio aniversário. Odeio acordar tarde. Odeio horário de verão, ainda mais na primavera.

Tive insônia. Acho que devo ter dormido de fato às quatro da madrugada, digo, cinco. A geladeira estava completamente vazia. A única sobrevivente, aliás, já nas últimas, era uma maçã. Não sei o que me deu que comprei essa maçã. Odeio maçã.

Eu tenho que arrumar a mala. Viajo amanhã e a minha casa está uma bagunça, que é algo que odeio. Vou com a minha mãe para a Espanha, de excursão. Odeio seguir guarda-chuvas. Tive dor-de-barriga só de pensar em entrar num avião. Quanto mais rodo o mundo, menos gosto. Odeio avião. Não tem ninguém pra levar a gente e vamos ter que ir para o aeroporto de táxi. Odeio táxi.

O Gato não está aqui e sinto falta dele e de suas reclamações. O costume me faz ficar na espreita, andando na ponta dos pés, com medo de pisar no rabo dele a qualquer momento. Tropecei no ratinho de brinquedo e meu coração disparou. Odeio essa sensação.

Fui almoçar fora, só eu e minha mãe, porque meu pai come num restaurante natural que eu realmente odeio, e não há data especial que o demova dessa idéia fixa. O peixe tinha algumas espinhas. Odeio espinhas. Todas elas.

Hoje vai passar na televisão uma droga de jogo de futebol do Brasil, contra não sei quem, eliminatória da Copa do Mundo. Odeio televisão. Odeio futebol. Odeio os fanáticos por futebol, que ficam berrando e soltando rojão no domingo. Odeio domingo.

Eu odeio pensar naquele Smurf Ranzinza (Smurf... Odeio lembrar dessas coisas que mais da metade do planeta nem sonha que um dia existiram), que vivia repetindo “eu odeio” e associar essa diminuta criatura azul a mim mesma. Odeio o Lula Molusco. Odeio o Patolino. Odeio o Zangado da Branca de Neve. Odeio maçã. De novo.

Estou com TPM, sim, aposto que foi isso que você pensou (odeio quem pensa isso). Mas essa é apenas uma das milhares de pequenas engrenagens da imensa e complexa estrutura que move o meu mau humor.

No momento, acho que só tem uma coisa que eu adoro (e preciso muito – além de chocolate e sexo, é claro): férias. Féééééériaaaaaaasssss!!!

10 de outubro de 2007

furada

Cheguei em cima das 11, um tantinho apreensiva assim. Afinal, fazia muito tempo que já não acreditava mais nessas coisas. Terapias alternativas, meditação transcendental, iridologia, abdução, sei lá mais o quê. Joguei tudo no mesmo saco. Sofismas. Nada zen me comove.

Agora estava ali, feito uma besta, descrente que nem cartesiano, na ante-sala decorada com aguinha jorrando na fontezinha de pedra, circulinho de yin-yang na parede, musiquinha new age tipo Enya de fundo, caixinha com areia e bolinhas de cristal pra desenhar imagens do subconsciente com o rastelinho. Ahhhh!

Tudo bem, eu queria provar pra mim mesma que poderia estar enganada. Esse negócio aí, criatura, vem de uma cultura milenar! Conhecimento de séculos, percebe? Deve fazer sentido... Pra alguém. Pior que isso seria a fisioterapia, os remédios pra dor. Até que gosto da minha tendinite, acho que é charmosinha, mas ela já estava ficando exibida demais. O medo de pagar um mico foi menor e, apesar de tudo, o plano de saúde estava pagando. Não o mico. A consulta. Talvez os dois.

Olhava para os lados, cruzava e descruzava as pernas, balançava os pés, conferia o relógio, “se demorar mais um minuto, voumembora”. Sim, mais um minuto e o ridículo que eu não queria sentir - mas berrava aqui dentro - ficaria insuportável.

E pareceu até que o escândalo tácito tinha sido ouvido. A terapeuta abriu a porta cinco segundos depois. Senhora bonita, loira, falava um português perfeito, muito diferente do velho chinês de barbas brancas até o pé que eu esperava encontrar. Dizia-se acupunturista.

Ela perguntou tudo da minha vida, feito homeopata. Será que vai diluir as agulhas em água numa proporção de um pra mil? Aí pediu pra ver meus pulsos, os dois juntos, e me mandou mostrar a língua. “Com prazer”. Lancei o olhar nas anotações e deu pra ver que ela escrevia “língua pálida e trêmula”. Pálida e trêmula? De músculo mais vigoroso do corpo humano, transformou-se num Pincher. Que queu tou fazendo aqui?...

Começou a tortura chinesa. “Dói?” Ai. “Dói?” Aaai... “Dói?” Aaaaaaiii!!! Descobri que tudo dói. Mas pensei que isso fosse culpa do ácido lático. Pega agulhinha e tuf! Nas costas. Depois outra, outra e mais outra. Umas dez. Vinte. Depois da oitava pontada perdi a noção. “Agora deita”. Deita? Como assim? Eu não sou faquir não, dona! “Não, não. As agulhas estão atravessadas. Pode vir”. Atravessadas, hein?... Ninguém tinha me falado sobre isso antes. Agora sei como São Sebastião se sentiu.

Deitada lá, com os eletrodos nos pés e nas mãos... Prrrrr... Tuc-tuc-tuc... Prrrrr... Tuc-tuc-tuc... Prrrrr... Tuc-tuc-tuc... Devia parecer um misto de Hellraiser com a noiva do Frankenstein.

Dizem que há quem relaxe – e durma! – enquanto fica ali todo espetado. Mas eu, furadinha de cima a baixo, com a insistência do BG de mantra nos ouvidos, claro, comecei a pensar besteira. E se esse prédio pega fogo? Eu estou aqui deitada de calcinha e sutiã, com agulhas até no crânio. Acho que vi um vídeo desses na Internet outro dia. Saio correndo pela porta desse jeito? Eu tenho sutiãs mais bonitos! E se as agulhadas atingem alguma artéria importante? Será que pode ser perigoso? Rolar uma hemorragia? E se esse aparelho aí entra em curto e me dá um choque? Qual será a voltagem desse bagulho? Ela não falou quanto tempo vou ter que ficar imóvel aqui!

Vinte e nove minutos e trinta e quatro segundos mais tarde, a terapeuta está de volta. Me livra dos eletrodos, dos fios, das agulhas todas, menos uma, dolorosamente descoberta na hora de vestir a blusa. Uuugh... Acho que a senhora esqueceu algo nas minhas costas... “Hihihihihi! É mesmo...” Hihihi. Aposto que uma ou outra devem estar cravadas embaixo da minha pele até hoje.

Para finalizar, sementinhas nas orelhas, fixadas com um esparadrapo cor da pele - não sei de quem - mais imperativo que Superbonder. “Aperte umas quatro vezes por dia. E só tire na próxima consulta”. Sim, senhora. Próxima consulta...

Saí do consultório me sentindo ridícula. Minhas orelhas latejavam e eu nem conseguia mais avaliar se alguém estava falando mal de mim ou não. Por via das dúvidas, mordi a gola da blusa com força. Nessa, quase esqueci o elevador e saí voando pela janela, como o Dumbo. Parecia que todo mundo estava sim, falando mal dos canteiros nas minhas orelhas.

Bem, dos males o menor... Tomara que sejam gérberas. São as minhas favoritas.

6 de outubro de 2007

as palavras certas

Drummond,
Se você estivesse aqui hoje
Esse nosso mundo cinzento e triste
Teria pelo menos
A cor e o conforto das palavras certas.