9 de novembro de 2009

o mundo num copo d'água

Coloquei o globo terrestre num copo d'água
Feito uma dentadura que observa,
Em meio a muxoxos de borbulhas,
O mundo distorcendo-se lá fora.
Flutuações dentifrícias
Num dia de devaneios banguelas.

Coloquei-o e o esqueci lá.

29 de setembro de 2009

memorial do dia 14 de outubro de 1970 (impressões embrionárias)

Acho que foi mais ou menos quando os Beatles terminaram que eu comecei.


De lá de dentro da barriga da mamãe, teve um dia que ouvi um grito de "goooool..." Era uma descoberta pra mim, esse negócio de ouvir. Tinha desenvolvido recentemente essa, digamos, percepção. Aproveitei para dar meu primeiro chute.


Mais ou menos um mês antes, o Jimi Hendrix fez sua última apresentação. Mais ou menos 21 anos depois, eu o homenageei batizando meu cachorro com esse nome.


A Janis Joplin morreu dez dias antes de eu nascer. Eu sempre gostei de Mercedes-Benz.


Uma semana antes, um militar socialista tomava o poder na Bolívia.

Três dias antes, o arquipélago de Fiji proclamava a sua independência.

Aí, eu nasci. Sei apenas que era o dia dedicado a São Calisto, religioso de devoção dos católicos. Interessante que o tal santo veio ao mundo escravo, comeu o pão-que-o-diabo amassou e acabou virando papa. Ah, sim, as catacumbas dele são as mais visitadas de Roma.

Dez dias depois, Salvador Allende assumia a presidência da República, no Chile.

E um mês depois, no aniversário da minha mãe, é que era o dia certo d'eu nascer. Não quis ser escorpiana não, apesar de ter aprendido a soltar meus veneninhos quando necessário.


A partir daí... Tudo é, literalmente, memorável.

20 de setembro de 2009

20:09, 20/09/2009

Agora são 20h09 do dia 20/09/2009.

Achei que podia ser importante fazer esse registro agora, uma vez que acabei de olhar no relógio e a hora me fez recordar a coincidência.

E eu acredito em coincidências.

11 de setembro de 2009

escatológicas

Plena sexta-feira, sabe como é... Vamos lá.

Encontrar uma pessoa conhecida num banheiro público é sempre constrangedor. Principalmente se é alguém que você não vê há muito tempo ou que não viu quase nunca. E, mais ainda, se o nome dessa criatura não passa de uma diminuta penumbra num recôndito recanto de sua mente.
Descargas quase que simultâneas. Saídas no mesmo segundo. Encaradas encurraladas. Cabeça balança, olhos arregalam. Lava as mãos, vira pro lado, disfarça e...

- Olá!
- Ooooi!... Ahn... Querida!
- Tudo bem?
- Tudo!...
- Há quanto tempo, hein?
- Pois é...
- Quando foi a última vez que nos vimos?
- A última vez?
- Acho que foi naquele barzinho lá na Asa Norte, não foi?
- É... Ahn... Foi! Foi isso mesmo...
- Mas não era dentro do banheiro! Hahahaha!
- Hahahaha... Não era...
- Mas tenho certeza que foi lá.
- Foi, foi.

Sorrisão observando, imóvel; meus dedos pingando com leve aspecto de maracujá passado.

- Você me dá licença? Preciso enxugar as mãos.
- Claro! Uma toalha ou duas?
- Três. Qualidade ruim, não enxuga nada, sabe como é.
- Hahahahaha! Você continua engraçada!
- Hahaha... Obrigada. Você também.
- Que bom!
- Eu vou indo então.
- Bom te ver!
- Ótimo...
- Tchau!
- Tchau.

Eu lá dentro, desfazendo-me de um inocente xixi. A mulher ao lado, concluindo seu plano maligno de detonar uma hecatombe nuclear. Descarga demorada. Muito demorada. Sai. Uma colega dela lavava as mãos, mas foi pega antes que pudesse reagir.

- Ai, menina, eu não consigo fazer fora de casa... É fogo!
(E combustível altamente inflamável)
- É eu também não sou nenhum reloginho.
(Apesar do tique-taque ser audível)
- Aí, quando sinto que a coisa vem, não dá pra segurar.
(Mas interdite o local, minha senhora!)
- Ah, é melhor não segurar mesmo não. Vai que depois não dá mais conta...
(O que você quer dizer com “não dá mais conta”?)
- É menina, resolvi meu problema agora!
(E criou um outro enorme para a camada de ozônio)
- Fez muito bem.
(Não, de novo não!)
- Hihihihihi!
(Esse xixi não acaba?)

29 de agosto de 2009

aula de flamenco

Esquerda! Salto, golpe, salto, salto, planta, virou! Direito! Planta, planta, golpe, salto, salto, virou...
Professora...
Sim?
Isso não faz o menor sentido. A vida inteira me disseram que o que um lado faz, o outro tem que fazer igual.
No flamenco as coisas são um pouquinho diferentes.
O que faz sentido pra mim é a lei da gravidade.
Como?
Meus dois pés esquerdos estão brigando com a planta e o salto do pé direito.
Sei...
E isso foi porque eu nem lembrei pra que lado os dois braços direitos vão ainda: se por dentro, por fora, de cima, de baixo ou de lado.
Calma, preste atenção que você consegue...
E ninguém comentou se eu devo girar as mãos e os dedinhos pra dentro ou pra fora neste dado ângulo.
Não se preocupe com isso agora...
Olha, eu não entendo como posso dar um pulinho com o salto do pé esquerdo levantado, sendo que o peso do corpo estaria para o lado direito e eu preciso voltar com a planta do pé direito imediatamente para fazer a troca para o golpe do pé esquerdo de novo cruzando por trás da perna direita e ainda finalizar com três saltos do referido pé direito.
Não racionalize tanto...
Eu não consigo.
Ai...
É que quando eu olho para o espelho tenho a leve impressão de que estou fazendo tudo ao contrário, entende?
Então não pense, apenas sinta o sapateado.
Professora...
Ahn?
Se eu pensar eu caio.

6 de agosto de 2009

terra vermelha

Eu e Lili íamos todos os dias à venda do turco. Minha mãe o chamava de turco, palavra imediatamente replicada por mim, mas hoje tenho convicção de que tratava-se de um cidadão libanês. Portava um bigode vistoso – assim como sua rechonchuda filha – e apontava para nós suas olheiras enormes e o nariz adunco de seus antepassados. Íamos de bicicleta, umas bicicletinhas de criança pequena, velhinhas, meio desconjuntadas. Na terra vermelha das ruas sem calçadas, canteiros ou asfalto, sumíamos em nuvens de redemoinhos, que havia muitos naquela época. Manifestávamos nossa presença depois que a poeira baixava e assim éramos vistas, de tempos em tempos, como crias de sacis. Enfiávamos as mãozinhas imundas nos bolsos e puxávamos moedas: um cruzeiro com sorte, cinquenta centavos frequentemente. Então atravessávamos a loja escura, cheia de barris de madeira abarrotados de farinhas e grãos, desviávamos das caixas com legumes e verduras, e nos esgueirávamos em direção ao balcão à procura de doces.

O baleiro giratório do armazém do turco ainda rebenta em meus melhores sonhos. Dentro dele, balinha Malukinha de uva e menta, chiclete Ploc e Ping Pong, paçoquinha de rolha, doce de abóbora em forma de coração e de banana cremoso-duro, que vinha dentro de um potinho de casquinha de sorvete, com pazinha para comer. Também tinha maria-mole cor-de-rosa e amarela, que a Lili comia sempre, vindo exibir a língua em Technicolor. Pagávamos e ganhávamos as compras dentro de saquinhos como os de pão, só que bem pequenininhos.

Do outro lado da rua havia uma loja de animais. Nossa rotina diária consistia nisso: primeiro compromisso, doces na venda do turco e segundo, visita aos bichinhos. Gostávamos de afagar os coelhos e alimentar os porquinhos-da-índia com capinzinho colhido ali na frente - Brasília na década de setenta era pura terra e mato. Lá se vendia até pombos, até galinhas e pintinhos, até cágados em aquários! Aquilo era o paraíso para menininhas de sete anos. Mas tínhamos outros afazeres importantes a cumprir para a tarde.

Pular amarelinha riscada com giz de gesso que achávamos jogados nas obras – também havia obras pra todo lado –, e competíamos usando casca de banana em vez de pedrinhas. Brincadeira de imitar “As Panteras” da tevê e todo mundo queria ser a Kelly, que era uma só. Acompanhar as formigas e catar algumas para fazer experiências com álcool de limpeza ou simplesmente descobrir se elas sabiam nadar. Subir na árvore de seiva que dava nódoa na roupa, o mais alto que pudéssemos – a Lili subia mais que eu. Fazer bolo de areia e flores no parquinho que o porteiro do prédio construiu sozinho, com o carinho de um confeiteiro.

Andávamos aquilo tudo sozinhas. Nossos pais nunca souberam por onde brincávamos. Sei só que no começo da noite ouvia um assobio característico ou um grito da janela do quarto andar: “Maaaarcya! Sooobe!” Despedía-me da Lili, deixando tacitamente acordada a agenda para o dia seguinte. E ao entrar em casa tal e qual uma escultura de barro, era obrigada a pular direto na banheira cheia d'água, que sempre ficava vermelha, vermelhinha, como a terra da minha infância.

13 de julho de 2009

om

Eu estava simplesmente feliz e tranquila. A noite de domingo tinha me deixado com um gostinho de alegria de viver na boca, que me fazia ver passarinhos cantando e flores se abrindo pra todo lado. Uma coisa! Saí cedo para uma consulta médica que se demorou por uma longa hora na diminuta sala de espera – na companhia de quatro criancinhas correndo e berrando simultaneamente, diga-se – mas nem me importei muito. Tudo lindo e maravilhoso, ainda deu tempo de chegar em casa e trocar de roupa pra ir à aula de yoga sem pressa.

No trânsito, nenhum semáforo fechado. Ninguém me cortou pela direita. Não precisei xingar nem buzinar nem acelerar. Apenas o sol, a avenida livre, o ventinho no rosto, uma música que eu gosto começou a tocar no rádio... “O barquinho vai... A tardinha cai...”

Lá na sala da academia, tudo arrumadinho e cheiroso. Mandei um “namastê” com todo o gosto antes de iniciar a minha prática. Nunca me senti tão flexível e troquei a alcunha de Mulher Invisível pela de Mulher Elástico – ou Elástica? Coloquei delicadamente as palmas das mãos no chão sem dobrar os joelhos e minha felicidade incontida aflorou num sorrisinho de plena satisfação comigo mesma e com o mundo ao meu redor. Ásanas terminados, vamos deitar, fechar os olhinhos e meditar.

O mantra entrava pelos ouvidos apenas para reforçar a paz que eu já desfrutava. Que calma, que relaxamento, que plenitude, que ronco... É. Ronco.

Alguém dormiu durante a meditação. Por mim tudo bem, durma e sonhe, desde que não ronque tão alto... Um ronco dos mais horrorosos, similar a um porcão chafurdando na lama, rotundo, infalível, ritmado. No breve espaço de tempo em que brotou, eu já não conseguia pensar em mais nada. Aliás, duvido muito que qualquer criatura dotada de audição num raio de um quilômetro tenha escapado ilesa ao ronco-motosserra da aparentemente inofensiva tiazinha, escarrapachada de braços abertos no piso da sala.

Olhei discretamente para o lado e pensei que ela fosse morrer – eu podia até dar uma ajudazinha – arfando a barriga pra cima e pra baixo num terremoto interno que batia 12 na escala Richter (segundo a Wikipédia, magnitude capaz de “dividir a Terra ao meio”). Meditei profundamente sobre a hipótese de sufocá-la com o tapetinho. Mas logo vi que não seria suficiente. Alguém acorde essa criatura, por misericórdia!

A professora percebeu que a turma estava em sofrimento. E resolveu terminar logo com aquilo, antes que chamassem o pessoal dos Direitos Humanos. “Vamos levantar agora”... Acho que teve que cutucar a tia, que enfim acordou, inocente, limpando a babinha.

Voltei pra casa vociferando: ommmmmmmmmm...

6 de maio de 2009

sueño

Acuerdate, mi amor,
De un día que todavia no vivimos?
Despierta

Caminamos por el Malecón, las manos entrelazadas
El viento jugando con las gotas de las olas suspendidas
A caer en nuestras caras y evaporar, felices, – por así decir –
Con el calor de los cuerpos sudorados del bueno sol.

Acuerdate?

Subimos por La Rambla; alguién cantaba,
Yo le dijo: ahora es todo nuestro, el tiempo.
Pero, en mi sueño, aunque tan bonito fuera,
No había tanto cuanto en tu mirada justo a mi.

Acuerdarte...
Y despierta conmigo
Se me han caído unas lágrimas de nostalgia por el porvenir.

Nosotros siempre
Lejos de las horas muertas
Encantados como un poema recién nacido en la mañana clara.

22 de março de 2009

el camino al caminar

Eu gostava de caminhar pelo Malecón. Gostava de ver aquela avenida beira-mar lindíssima meio abandonada, com seus prédios desbotados, querendo cair, mas sem muita motivação. Ali sentia-me verdadeiramente no passado, lá pelos fins dos anos 50, que foi quando o tempo parou em Cuba. Das janelas sem varandas, quase nenhum dos habitantes olhava, já sabidos e enjoados que estavam da paisagem que, apesar de divina, não enchia a barriga de ninguém.

A praia de La Habana não tinha areia. Somente pedras, o muro de contenção e a água azul-nervoso, se debatendo num desejo louco de arrastar aquelas construções decadentes para o fundo. A brisa não havia. Era um vento forte, um vento que descabelava tudo, principalmente nas temporadas ciclônicas, em que ele quase me levava pelos ares. Mas eu já levitava. Sentia o gosto de sal perfumado, o cheiro de mar de quando eu era criança, o olhar de filme antigo nos passos arrastados daquela gente que sorri.

Toda hora passava um calhambeque fazendo barulho ou um cadillac rabo-de-peixe soltando fumaça preta fedorenta que empesteava tudo. Os táxis Mercedes de luxo também, esses sim, sem deixar um rastro de ruído sequer. Silenciosos, abençoados com ar-condicionado, carregavam os endinheirados que se hospedavam no Habana Libre, se banhavam na Varadero paradisíaca, zanzavam pela linda Habana Vieja, dançavam salsa na Tropicana e depois de dez dias no país voltavam pra casa achando que o comunismo deu certo.

Nos fins-de-semana, aquele passeio público se enchia de namorados. Dezenas de trios de músicos percorriam o caminho com violão, flautinha e bongô – os instrumentos variavam –, e se agarravam aos turistas e aos amantes, esperando ganhar uns trocados. Cantavam sempre as mesmas músicas românticas que, um dia, apesar de gostar delas, cansei de ouvir. “Esto no puede ser no más que una canción... Quisiera fuera una declaración de amor... Romántica, sin reparar en formas tales... Que pongan freno a lo que siento ahora a raudales... Te amo, te amo, eternamente, te amo...”

Tenho saudades das tardes de sol no Malecón em Havana.

16 de março de 2009

3 de março de 2009

chá das 5 com os imortais

Peter Pan fala pro Dorian Gray:
- Passa o açúcar?
- Um torrão ou dois?
- Deixa de frescura e passa logo esse açucareiro! Não tem torrão nenhum aí!
- Hummm... Grosso!
- Por que você não vai dar uma espiada no seu retrato e larga do meu pé?
- Por isso que a tua sombra já largou do teu pé há muito tempo!

Silêncio constrangedor.

- O último que disse isso perdeu a mão no estômago de um crocodilo.
Todos se olham. Só se ouve o tique-taque do relógio.
- Vamos mudar de assunto – pediu Dom Sebastião. Já estou cansado de guerra.

- A sua pele está maravilhosa, Highlander – elogiou Richard Clayderman.
- É fácil manter. Ninguém precisa perder a cabeça por isso – vira-se para o Conde Drácula – não resisto a essa piadinha.
- Eu já não posso dizer o mesmo... Se pelo menos fosse uma xícara de sangue, em vez desse chá!
- Ofereço o meu, se o gentil cavalheiro assim desejar – disse Dorian Gray atirando um olhar lânguido.
- Que tipo é?
- “A” positivo.
- Lamento, só consumo “O” negativo. A gente vai ficando mais exigente com o tempo... Mas agradeço a oferta.
- Não há de quê.

- Alguém aqui pode me dizer que espécie de biscoito de polvilho duro é esse? Quem fez essa mistura não entendia nada de alquimia – blasfemou Saint Germain. – Nem a pedra filosofal teria quebrado meu dente assim!
Drácula deu um gritinho:
- Ai!
- Que foi?
- Ainda bem que não mordi com o canino.
Um e outro sorveram o chá quente e largaram disfarçadamente seus biscoitos no prato. Não adiantou, pois, ao caírem, rodopiaram fazendo um barulho metálico.

- Se eu soubesse que ia passar a eternidade com vocês...
- O que é que tem?
- Teria morrido de verdade – suspirou Elvis.

2 de março de 2009

peter pan




















Esta foto (clique nela para ampliar) que tirei no Kensington Gardens foi selecionada para compor a sexta edição do "Schmap London Guide", guia online da cidade de Londres. Para acessar o link direto:

http://www.schmap.com/london/toppicks_attractions/p=528/i=528_54.jpg

Também, rodei tanto por lá sozinha que já estava mesmo posando de guia! YES!

(Aproveitando: mil beijos para Fábia e Tó, que cuidaram de mim quando estive lá! Me senti a própria rainha da Inglaterra na casa deles!)

13 de fevereiro de 2009

idéias que invadem a mente durante a meditação na aula de ioga (quando eu não deveria pensar em nada)

Vixe, hoje é sexta-feira, 13.

Estacionei o carro no sol e aquilo vai estar um forno de microondas quando eu voltar.

Será que o Locke morreu mesmo?

Estou com uma vontade louca de comprar uns vestidos, uns sapatos novos... Mas eu não posso! Sai, sai!

Esse BBB 9 tá uma bosta.

Acho que meu dedinho do pé está ficando dormente.

Esse barulho foi do estômago de alguém? Jesus!

Amanhã tem aula de balé clássico, bem no horário do almoço, e já sei que vou sair furiosa de fome e devorar o que estiver pelo caminho. Seja lá o que for.

Será que eu não vou poder ser bailarina porque não existe collant do meu tamanho?

Odeio rede sem fio. Odeio!

Huahuahuahuahuahuahuahuahua! Mas por que eu estou rindo?

Acho que sonhei com o Brad Pitt.

Que horas será que são?

2 de fevereiro de 2009

pensamentos miados



















Meus instintos felinos dizem que hoje vai ter atum. Pressinto o cheiro do atum, mesmo dentro da lata. Ela vai comer atum hoje. Sanduíche de atum. Tenho certeza! É que hoje é dia dela sair cedo com uma roupa engraçada, bolsa grande e tênis. Ah, os tênis! Amo aqueles cadarços mais que tudo nas minhas sete vidas. Fora o atum. E iogurte de morango. E caixas, claro.

Então, nos dias em que ela sai assim, volta no fim da manhã e come rápido. Não suja nada na cozinha. Não fica nada pra fuçar escondido quando ela vai embora. Principalmente se for um dia depois da visita daquela mulher baixinha do aspirador de pó. Vocês sabem do que se trata, não é? O aspirador de pó é um monstro que fica dias trancado no armário. Ele é pior que qualquer cachorro. Pior que o veterinário. Pior que o petshop. Pior que o secador de cabelos. Odeio o aspirador de pó.

A tal mulher baixinha vem uma vez por semana, liberta o monstro, limpa tudo, esfrega panos e cheiros esquisitos no chão e nos móveis, tira meus odores da casa inteira e depois eu tenho que ficar salivando em tudo de novo! É um inferno! Um serviço que não acaba nunca.

Ela abriu o armário da cozinha. Acho que está procurando a lata de atum. Não. Vai colocar aquele troço marrom no leite. Eu já gostei de leite, muito tempo atrás. Mas agora leite me embrulha o estômago. Passo mal e não ponho pra fora apenas as singelas bolas de pelos. Acho que estou ficando velha. Imagina, já vou fazer nove anos de vida! Ainda bem que tenho outras seis.

Ela me chamou. Será que eu vou? Ou não? Essa indecisão me mata. Acho que vou, bem devagar, pra não parecer que estou obedecendo. Vou me atirar nos pés dela e espero sinceramente que isso valha uma boa recompensa, do tipo coçadinha na barriga. Ou um pedaço maior de atum.

31 de janeiro de 2009

a coruja

Eu estava passando pela placa de "proibido estacionar" e tinha uma coruja estacionada nela. O bicho girou a cabeça 180 graus para acompanhar o meu caminho com aqueles olhões amarelos. Acho que ninguém viu a coruja, só eu. A placa era muito alta. Nos encaramos uma à outra, quase de frente, apesar de meu pescoço não girar 180 graus. Por um segundo, ventou um receio de que ela me atacasse, pressentindo perigo para alguma ninhada escondida por perto. Mas não. Ficamos cúmplices. E acho até que ela sorriu pra mim.

23 de janeiro de 2009

a bailarina (sem noção)

Esta menina,
Enorme desse jeito
Quer ser bailarina.

Conhece dó e ré,
Mas mal e mal para em pé.

Conhece Mi e Fá,
Mas quando inclina o corpo é tombo na certa.

Conhece lá e Si,
Mas arregala os olhos e cai na gargalhada.

Roda, roda, roda, raspando o teto com seu bração,
Fica tonta e se esborracha no chão.

Põe no cabelo um arco de florzinha
E diz que já se acostumou a levantar sozinha.

Esta menina
A essa altura do campeonato
Quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as cobranças
E vai pagar mico, se acabar nas danças!

22 de janeiro de 2009

morango e chocolate

Assisti a "Morango e Chocolate" e fiquei fascinada com aquele lugar. Agora eu precisava tomar sorvete de morango e chocolate na Coppelia, senão meu filho poderia nascer com essa cara. De morango, de chocolate, de sorvete ou de Coppelia. Vivia um desejo alucinado de encarar a fila, sentar naquela mesona enorme e torcer para que os sabores do dia fossem morango e chocolate. É que ali não tinha querer. Eles serviam o sabor que tivesse no dia.

Anos depois, fui até lá.

Nessa tal fila, tinha de tudo. Todo o tipo de gente estranha: putas de sapatos de plataforma, crianças de uniforme de escola, trabalhadores braçais, avós de alguém, turistas branquelos de óculos escuros, estudantes fazendo farra. Era tanta gente que dava mais de uma volta no quarteirão. O último podia enxergar o primeiro do seu lado. Alguns levavam suas próprias colheres, o que me fez pressentir que talvez lá dentro todo mundo compartilhasse dos mesmos talheres, como manda um bom comunismo, conjugando babas das mais diversas origens.

Mesmo sem colher pessoal, fiquei lá, por quase duas horas, tostando no sol. Ainda dei essa falta de sorte, de ir num dia de intenso calor. Mas havia todo o charme envolvente da situação, que me dava forças para insistir, ainda que suada e queimada.

Entravam na sorveteria grupos de vinte, se não me engano. O negócio era como uma corrida. As pessoas sentavam, os sorvetes eram servidos e havia um tempo para comer, senão tiravam as taças antes que terminassem. Pelo menos a brincadeira saia barata. Duas bolas custavam um peso cubano, ou seja, praticamente nada.

Quando estava bem perto, algo como a sessenta pessoas do início da fila, alguém saiu dizendo que só tinha sabor baunilha. Foi uma decepção terrível. Baunilha?! Pensei muito e resolvi desistir. Depois de todo o esforço, não aguentava mais aquele sol inteiro só pra mim, um sacrifício desproporcional à descorada baunilha. Voltaria, num dia frio, chegaria mais cedo, sei lá.

Foi quando ouvimos que a barraquinha que havia em frente à Coppelia vendia o mesmo sorvete. Só que ali era mais caro, aliás muito caro, para os turistas das excursões que tinham pressa e não podiam esperar na fila. Havia colheres individuais e era permitido também escolher os sabores. Tinha até casquinha. Resolvemos pagar – com dólar – pra ver. Ou degustar. Morango e chocolate, claro.

E era ruim, viu? Muito ruim. Péssimo. Era sorvete feito com água; nada de leite, nananina. O gosto era genuinamente artificial. Na verdade, não consegui distinguir muito bem um sabor do outro. Parecia tudo igual. Acho que foi, sem muito titubeio, um dos piores que já tomei na vida. Depois de quase um ano vivendo na ilha, eu deveria ter imaginado que seria assim.

A fila nunca mais me pegou. Mas todas as vezes que passava em frente à Coppelia, me sentava e ficava olhando para ela. Aquela gente toda esperando por morangos e chocolates que não iam vir. Descobri que os enganados mentem, espalham que o sorvete é ótimo, uma iguaria, como numa peça de mau gosto, para o ouvinte ficar encantado e as ganas o transportarem um dia para aquele lugar exótico, com sabores cubanos que nunca existiram de verdade em Cuba, como num filme de cinema.

15 de janeiro de 2009

o que os amigos dizem

Estou com dor de dente há dias. E, literalmente, sangue no olho (como diz minha amiga Fabiana), mas é porque tive um derramezinho ocular. Derramezinho nada. Estava enorme e, grudado na minha íris verde, parecia um quadro abstrato de artista plástico japonês (como disse meu amigo Pedro Henrique).

Enquanto isso, o dente dói. Acho que foi porque plantei uma bananeira perfeita na aula de yoga e os meus maxilares irrigaram demais a raiz. Da bananeira não, do dente. Minha amiga Maria disse que estava perfeita e me deu os parabéns. Mas não consegui uma consulta de emergência e esperei pacientemente por três dias para ser atendida com hora marcada. A dor aumentou. Descobri com tristeza que o meu dentista lindo se casou. Nem sei porque me entristeci. Fazia mais de dois anos que eu não ia lá.

O sangue no olho amedrontou todos os meus amigos, menos eu, que não conseguia visualizar aquela mancha vermelha, a não ser bem de perto no espelho. Por insistência deles fui à emergência do serviço médico da Câmara e, como foi um clínico que disse que não era nada, ninguém acreditou. “Vai num especialista!” – disseram em uníssono. Fui ao oftalmologista, que não era casado, mas também não era lindo. E ele repetiu que não era nada mesmo. “Só um derramezinho ocular”. Vai passar em quinze dias. “Até um espirro pode provocar isso”. Um espirro. Aposto que foi a bananeira que eu plantei.

Minha mãe falou que eu não devia mais ficar plantando bananeira na aula de yoga. Olha a minha idade.

E o meu dentista lindo, que não é meu amigo por assim dizer - temos uma relação estritamente profissional - não disse nada. Nem reparou o sangue no olho.

Minha amiga Maíra sempre pergunta: "por que as coisas são assim?"

10 de janeiro de 2009

se meu apartamento falasse

O piso está ficando cheio de riscos. Eu ando de salto, pra lá e pra cá, apesar de ser tão alta descalça. Para ganhar impulso, os gatos cravam as unhas no chão na brincadeira de correr. Tenho mania de trocar os móveis de lugar. Arrasto tudo sozinha. Depois olho pra baixo e vejo os rastros de minha obra. Porcaria de laminado. Espero que o proprietário do apartamento não se lembre muito bem como ele era antes. Corro riscos.

Tenho um verdadeiro ódio daquele lustre da sala. Ódio mesmo. Me recosto na minha maravilhosa poltrona vermelha de design (que eu amo) e fico observando aquilo ali. Aquele encosto de lustre. Um verdadeiro encosto. Quando penso em algo muito ruim lembro do lustre, imediatamente. Tipo Laranja Mecânica. Que espécie de pessoa coloca uma aberração dessas no meio da sala?

E tem a porta. É uma porta, essa porta. Coisa de gente, no mínimo, sem gosto. Com umas treliças falsas esculpidas na madeira (deve ser laminado também). Eu quero bater naquela porta, bater, bater, bater com força. Acho até que alguém já tentou isso antes, porque ela está meio torta pra um lado. Fica uma frestinha em cima. E para completar, a maçaneta é travada do lado de fora. Se é a porta que bate, adeus.

O quarto de televisão seria a suíte. Digo seria porque tem tantos armários, tantos, armários ensandecidos e genuinamente horrorosos, armários até no teto, até em cima da porta, até na janela... Que a minha cama não cabe lá. E nem eu queria dormir num lugar tão claustrofóbico, que parece que à noite, o monstro do armário de puxadores dourados vai me engolir.

As persianas verticais são velhas e não tapam claridade nenhuma. Tenho medo dos cordões arrebentarem quando puxo e chego a desistir de abri-las. Também, que diferença faz? Os suportes das correntinhas que unem uma persiana à outra são de plástico e depois de uns meses de sol direto começam a desmanchar na mão, feito biscoitinho de polvilho caseiro. Difícil de engolir. O passatempo favorito dos gatos é morder e puxar essas correntinhas, até arrancar tudo. Já perdi as contas de quantas "unidades de suporte plástico" comprei e instalei.

Detesto o rodateto. Fritei os miolos num árduo exercício de raciocínio lógico, para concluir que eram de isopor e não de gesso, como os convencionais. É que, bem em cima das portas de vidro, um pedaço dele ficou pendurado. Se fosse de gesso teria caído direto. Era algo surreal aquele rodateto com aspecto de gesso pendurado daquele jeito. Um desafio às leis da gravidade. Pensei em tanta coisa... Será que é de papel? Papelão. Ahnnn... Plástico. Ou, se tiver sorte, é apenas uma miragem, uma alucinação. Vai sumir quando eu abrir os olhos de novo. Putz. Continua ali.

Mas vamos falar de coisas que eu gosto no apartamento, além dos meus próprios móveis e objetos.

...

A vista do Lago Paranoá, lá fora.