29 de julho de 2008

o primeiro quadro



A gente chegou lá, duas da tarde, no Leblon, conforme o combinado.
O cara estava pintando um quadro.
- Viram? Meu primeiro quadro.
Algo assim meio Van Gogh, meio Andy Warhol.
- Resolvi pintar a minha própria cara porque ninguém pode reclamar. Só eu.
Eu não reclamaria se você pintasse um retrato meu.
(Ele riu)
Mas é o primeiro mesmo? Você nunca pintou tela nenhuma?
- Não. Era um sonho nosso. Meu e do meu irmão. Mas a gente começou a desenhar no papel e aí... Era mais barato.
Eu diria que você está indo muito bem.
- Obrigado.
Não acredito que a gente está aqui registrando o seu primeiro quadro.
- É. Olha, vou pintar mais um auto-retrato nesse quadradinho aqui.
Pincela pontilhista, colorido, meio Seurat agora.
- Esse é o mais parecido comigo, não é?
Depende de como você acorda.
(Ele riu de novo)
Remexe o pincel pra lá e pra cá, começa a pintar outro.
Depois você poderia nos mostrar umas charges?
- Você quer que eu pare o meu trabalho pra te mostrar o meu próprio trabalho?
Não. Se você preferir a gente pode ficar aqui o dia todo.
- Justo agora que eu estava ficando parecido com o Lobão!
Levanta e vai caminhando para um armário de ferro com gavetas largas.
Lobão? Eu vi um quê de Arnaldo Antunes...
- Arnaldo Antunes! Arnaldo Antunes... É mesmo...
Será que tem alguma de 1988?
- Eu não sou tão organizado assim...
Vasculha as gavetas cheias de pastas com desenhos. Fecha uma, abre outra.
Se não achar, tudo bem, não precisa se preocupar... A gente já gravou bastante.
- Não, espera aí... Olha: o Ulysses com a Constituição.
Genial, genial!
- Tá bom?
Puxa, ficou bom demais! Obrigada mesmo.
Grava, grava, grava, de perto, de longe, de tudo que é jeito.
Será que você tiraria uma foto com a gente?
- Foto? É para o trabalho?
Não, é tietagem mesmo.
(Riu)
- Claro, vamos. Todo mundo aqui atrás.
Com o primeiro quadro?!
- É.
Pô, Chico, essa vai entrar pra história.

(Flashes lembrados da entrevista com Chico Caruso para o programa Constituindo, da TV Câmara)

15 de julho de 2008

chegadas e partidas




a caldeira está fervendo
as linhas férreas
e retas
se curvam ao calor

Me espera, condutor!
(tá na hora?)
Avisa, maquinista, que eu vou junto!
(posso ir?)

vamos marcar os assentos
bem próximos, na janela
e viajar

Eu ainda quero alcançar esse trem
(será que dá tempo?)




(Foto que tirei da maria-fumaça de Passa Quatro, MG, na Serra da Mantiqueira)

10 de julho de 2008

exame de coração

"Ô, mulher sem coração!"

É, foi isso o que ele disse.

Sempre tive pressão baixa. Mas, não sei porque, encasquetei que precisava revisar geral. Talvez pelo aumento considerável da atividade física, talvez pela lembrança longínqua de um propalado prolapso da válvula mitral no passado adolescente, sei lá, resolvi procurar um cardiologista.

Abri meu coração pra ele. Depois de perguntar sobre o histórico de toda a família e ouvir um quilométrico desfiar de "nãos", me receitou uma lista de exames de todos os tipos, muitos deles feitos ali no próprio consultório, o que me fez até desconfiar da autenticidade das preocupações do médico com meu suposto problema. No final, decidi: vamos onerar um pouquinho o plano de saúde. É pra isso mesmo que eu estou pagando.

Pra começar, coloquei um aparelho de monitoramento de pressão 24 horas. Na rua, todo mundo olhando pra mim. Debaixo da blusa, meu bíceps crescia misteriosamente como se eu fosse o Popeye comendo espinafre. Prrrrrrrrrrr. Fuuuu. Fuuuu. Fuuuu. Fuuuu. Fuuuu. Sssshhhhhhh...

O negócio preso no meu braço enchia de ar a cada quinze minutos, durante o dia inteiro – e depois, a noite inteira -, infalível e inflalível, o que, realmente, deve ter contribuído bastante para aumentar como nunca a minha pressão arterial. Prrrrrrrrrrr. Fuuuu. Fuuuu. Fuuuu. Fuuuu. Fuuuu. Sssshhhhhhh...

Fui trabalhar com esse bagulho pendurado. Me senti a mulher-bomba. E até que não era má idéia. Logo ao chegar, mandaram que eu fizesse um videozinho lindo de última hora, com imagens cedidas pela tevê local de uma cidadezinha do interior de sei lá onde. Acho que o nome terminava com "-aba". Enfim... Da meia hora de fita gravada, não tinha um só take que tivesse foco ou enquadramento. Prrrrrrrrrrr. Fuuuu. Fuuuu. Fuuuu. Fuuuu. Fuuuu. Sssshhhhhhh... Pensei que o troço fosse explodir. Fiquei com o coração na mão.

O teste de esforço físico fez jus ao título. Me acabei naquela esteira, arfando feito cachorro que caiu do caminhão de mudança, e corria numa inclinação nível "Aconcágua" sem equipamento de escalada. O técnico que acompanhava o exame tinha coração de pedra.

Moççççouu! Arf... Arf... Arf...
(Nada dele me olhar)
Mooooooooooçu!
"Sim, pode falar."
Nããou... Arf... Arf... Eeeuu nãããoouuu poss falar... Arf... Arf... Eeeeuuu... Nããooou... Agüeeentuuu... Maaaaisss!!!
"Agüenta mais um pouquinho sim."
Eeeuuu... Arf... Arf... Vouuuu... Arf... Arf... Pulá...
"Só faltam dez segundos!"
Dezzz seee... Arf... Arf... Dezzz seeeggg...
(Pulei)
Arf... Arf... Arf... Arf... Arf... Arf...
"Puxa vida, você estava indo tão bem!"
Nããoou tava nãããouu... Arf... Arf... Juro que nããoouu... Arf... Arf...

Na avaliação oficial desse teste, conforme atestava o laudo – e apesar dos dez segundos,- fiquei bem acima da média "das mulheres da mesma idade". Que desaforo. Cortou meu coração.

Ainda fiz uma ecografia cardíaca, vai saber exatamente para quê. Ah, sim. Foi aí que descobriram: meu coração é minúsculo - pesa menos de 200g.

"Ô, mulher sem coração!"

Tá explicado.

Muito satisfeito e risonho, o médico disse que eu não tinha absolutamente nada além de uma saúde de ferro.

O senhor, em compensação, tem um coração de ouro!
(Ele sorriu – acho que não entendeu a piada)
"Parabéns!"
Para o senhor também.

Saí de lá com aquela papelada assinada e certificada, que garantia que meu órgão cardíaco ia muito bem, obrigada, apesar dos trancos que já levou pela vida afora. Ainda assim, desconfiei. Sabia que estava calejado, maltratado e precisava de muito mais cuidado e carinho.

7 de julho de 2008

lembranças de um outro dia frio

Quando abri os olhos, estava tudo escuro. O despertador dos anos oitenta era implacável e o tilintar estridente acordaria a casa inteira se eu não fosse rápida. A velha cama de molas enferrujadas rangeu e chacoalhou por trinta segundos com um único movimento do meu braço. Recorde mundial.

Queria, mas não podia tomar banho. A essa hora ainda não havia água na torneira e os barris imensos de plástico azul – nem Deus sabe o que havia ali antes - estavam vazios desde ontem à noite. Coloquei uma roupa limpa, porém muito surrada, e saí sem tomar café. Não tinha. Era preciso fazer essa refeição na escuela.

A casa onde estava hospedada ficava em Vedado, um bairro de classe média alta pós-decadente, de aparelhos de tevê com antenas enferrujadas e geladeiras certeiramente responsáveis pelo buraco na camada de ozônio do planeta. As construções eram lindas, moderníssimas para quem viveu em 1958, mas dessa época em diante não viram mais uma pintura, uma restauração, uma reforminha.

Estava ali na mesma rua de familiares de Raul Castro e, diante do prédio deles, um homem vestido de verde postava guarda diuturnamente. Ao atravessar, sempre ficava na dúvida se deveria olhar para ele ou não.

O movimento era pouco àquela hora. Mesmo assim, as avenidas já cheiravam forte a óleo e fumaça, mais que em qualquer outro lugar do mundo onde estive. Alguns Cadillacs desmoronados faziam um barulho alarmante, de enxame de marimbondos enlouquecidos, mas os motoristas não pareciam muito preocupados com isso.

Eu precisava caminhar um bom trecho sozinha por entre as calles até o ponto do ônibus amarelo da década de 50 – carinhosamente chamado de “la guágua” - que me levaria à escuela. No trajeto, passava bem em frente ao suntuoso cemitério Cristóbal Colón, orgulho para a população cubana, onde jaziam alguns dos grandes heróis da revolução – ou alguma coisa deles. Sentia arrepios.

Afinal, aquele era um dia frio – sim, creiam, também faz frio em La Habana. E, muito diferente do meu distante planalto central, a cidade era tão úmida que às vezes acreditava na possibilidade real de cortar a massa de ar com uma faca. Parecia até que andava dentro d’água, vencendo a resistência do meio a cada passo.

Todos os dias, no trajeto, um sujeito qualquer me atirava uma cantada boba. Depois vinha outro. E mais outro. Nem lembro quantos – isso é muito comum por lá. Meus brios fermentavam, ainda que soubesse que os elogios dos rapazes não tinham nada de sincero. Todos queriam deixar a ilha um dia. E, para eles, fora a aventura de atravessar as 90 milhas que os separavam de Miami numa bóia de pneu de caminhão, um bom casamento era o jeito mais curto e agradável para isso. Pouco me importava. Que continuassem com aquelas declarações de fulminante paixão eterna a cada esquina. Faziam-me bem.

Na calçada, uma mulher negra, de coque encarapitado bem no topo da cabeça, vendia uns bolos de cremes e confeitos multicoloridos, pronta para sair correndo ou enfiá-los dentro de uma sacola a qualquer momento. No mesmo rumo, se não me engano, outros me ofereceriam ovos e pães, com a discrição própria a quem sabe que faz algo ilícito. “Huevos? Pan?” Apontavam para a comida escondida dentro do casaco. Já estava ficando com fome.

Ao chegar ao ponto da guágua, mesmo cedo como fui, a fila já estava grande, enorme, gigantesca! Esse era um costume dos nativos, do qual não havia como escapar. Pensando bem, as filas faziam parte do cotidiano de todas as sociedades contemporâneas. Por que não aqui? Consegui até um lugar para sentar. Em cima da roda, mas me sentei. Voltaria para casa no fim da tarde, escurecendo outra vez, para mais uma noite de molas e sonhos em Havana.