10 de setembro de 2007

primeiro conto: o jardim

(Este conto participa de um concurso. do Núcleo de Literatura da CD. O final já existia desde muito; estava escrito aqui no blog)

Pontinhas de galhos ressequidos denunciavam os bulbos que dormiam e, sem querer, saltavam da terra escura exposta ao chão cru. As forquilhas que desejaram ser brotos foram deixadas ao acaso do tempo, esquecidas nos canteiros desfeitos em abandono. Havia muitas outras coisas que se fazer ali, antes de se pensar em flores. O que um dia foi visto como jardim era agora um espelho perfeito para o recinto de tantos aflitos.

Casa de repouso era um epíteto ameno para o sanatório de paredes forjadas sobre pedras frias. Apesar de tudo, era um lugar limpo e arejado, como poucos naquele tempo. Lá se sofria e se orava. As freiras passavam de um lado para o outro em suas vestes monótonas, cumprimentavam-se, apressavam-se em cuidar de seus doentes. Chamavam os quartos de “celas”.

Era verão e eu gostava de caminhar quando havia luz e calor. Sonhava em sair daquele prédio insípido para ver de perto o verde dos ciprestes do outro lado dos muros, mas não me deixavam. Queria afastar-me dos tons de cinza que venciam o cubículo de ângulos tortos onde tentava dormir às noites. A minha vida inteira já havia sido assim. Triste, pálida, sem cor.

Tinha trinta e seis anos. Não conheci quem quisesse comigo compartilhar uma família. Perdi a chance de ser mãe. Os meus, todos se foram cedo e, sozinha, envelheci. Escaparam-me a razão e a vontade de ser. E minha existência incolor começou a pedir insistentemente o vermelho do sangue. Obedeci. Meus pulsos ainda ardiam quando acordei, muito longe de casa. Os vizinhos se apavoraram. Pensaram que eu estivesse louca.

Mas eu não temia os mortos – que me lembre, nunca temi. Ao contrário, identificava-me com eles, sentia um carinho cúmplice, quente e fraterno. Eu queria essa proximidade. Eram eles que me protegiam da escuridão noturna, quando os pesadelos visitavam os dementes. Eram os gritos que me aterrorizavam. Os loucos embarcavam em seus sonhos ruins com a intensidade da razão que nunca tiveram.

Um deles - acho que por esse motivo - não dormia. Varava a penumbra iluminado de velas equilibradas, que traçavam em seu rosto o aspecto da alma atormentada. Eu sempre o via sair. Sumia, arrastando suas correntes pelas trevas; só voltava quase ao amanhecer. E assim, amante dos fantasmas como eu, passei a amá-lo também.

Soube que tínhamos a mesma idade. A princípio, lembro-me bem, pareceu-me apenas mais um espectro, como todos os outros, vagando pelos corredores desbotados. Mas em pouco reparei melhor: o homem trazia no corpo a marca dos pigmentos criadores. Mãos, calças, casaco, chapéu. Às vezes até a barba exibia um respingo insólito. Ele era um pintor! Cerúleo, Cádmio, Cobalto, Ocre, Nápoles, Carmim. As tintas denunciavam o ofício e o faziam cheirar forte por isso; o fedor de Saturno a gotejar veneno em suas idéias.

Cheguei a ouvir cochichos de que era perigoso. Vez ou outra, jorravam de seu olhar ácido uns espasmos de violência incontida, explosões da galáxia distante que só ele conhecia. Eu sei. Os tentáculos de luz das estrelas queriam agarrá-lo e levá-lo para o outro mundo. Mas tinha medo de ir. Gritava e se contorcia em dores, no desespero da dúvida. Dentro de minhas próprias dúvidas, observava de longe o lamento das matizes vivas.

O que mais me intrigava, porém, é que o homem estranho se abandonava todos os dias diante de um ponto fixo do jardim morto e ficava lá, por incontáveis horas de sol e vento, sentado num banco duro de ferro, admirando o nada. Deleitava-se na expressão do solo nu, levantava as mãos e pintava uma tela invisível, como se estivesse enxergando contornos no vazio. E se mostrava assim, em êxtase, por tudo o que os outros não podiam ver. Ele, tão estranho quanto eu, pensei.

Até que, num dia de manhã luminosa, levantei-me mais cedo que todos. Foi o sol que me despertou e me tomou pela mão até o ar fresco lá fora. Respirei muito fundo e senti o prazer das batidas de meu coração, mostrando-me que estava viva. Foi quando, à distância, percebi algo diferente.

Em frente ao banco de ferro, as íris irrompiam cachos e botões. Não podia acreditar naquilo. Até ontem, o que existia era o terreno puro, sem cuidado, desfalecido. Agora, mil folhas polpudas espichavam seus bracinhos como que espreguiçando, acordadas para o dia e para a luz. Tons de violeta e azul, com miolos amarelos, flores cheias avançavam em pétalas para dentro de minhas pupilas incrédulas. Sentei-me e fiquei assim, levada pelo fascínio de um jardim recém-nascido, imaginando se, o tempo todo, ele não estivera ali, diante de mim.

- Você está vendo aquela flor branca?

Nunca tinha ouvido uma voz tão serena. Havia sim, uma única flor branca, solitária, entre todas aquelas cores. Senti-me feliz. A lembrança dos urros insensatos daquele homem dissiparam-se para sempre no entremeio das nuvens poucas do céu.

- Sim.

Uma revoada negra atravessou o pátio do hospício.

- Aquela flor branca sou eu.

Fiquei a admirar a solidão de um entre tantos iguais. Pela primeira vez, o artista colocou em mim aqueles olhos singularmente tristes:

- Você acha que o jardim de íris existe de verdade?

E eu respondi, com as íris brilhando:

- Não, Vincent. Acho que não.

4 comentários:

popfabi disse...

pôxa...nossa...putz...caramba...
lindolindolinodolindolindolindo

Silvio Garcia Martins Filho disse...

Quando fiquei sabendo que vc ia participar do concurso (também cogitei em fazê-lo, mas, muito sabiamente, desisti, rsrs.) pensei: Já ganhou, já ganhou!

Lindo! Muito sensível e rico em cores, sensações, imagens. Adorei!

Beijo e até logo!

Marcya disse...

Obrigada, crianças!

O Maltrapa disse...

Vincent adoraria poder ler esse texto...

Excelente, neguinha!

O Maltrapa