29 de agosto de 2009

aula de flamenco

Esquerda! Salto, golpe, salto, salto, planta, virou! Direito! Planta, planta, golpe, salto, salto, virou...
Professora...
Sim?
Isso não faz o menor sentido. A vida inteira me disseram que o que um lado faz, o outro tem que fazer igual.
No flamenco as coisas são um pouquinho diferentes.
O que faz sentido pra mim é a lei da gravidade.
Como?
Meus dois pés esquerdos estão brigando com a planta e o salto do pé direito.
Sei...
E isso foi porque eu nem lembrei pra que lado os dois braços direitos vão ainda: se por dentro, por fora, de cima, de baixo ou de lado.
Calma, preste atenção que você consegue...
E ninguém comentou se eu devo girar as mãos e os dedinhos pra dentro ou pra fora neste dado ângulo.
Não se preocupe com isso agora...
Olha, eu não entendo como posso dar um pulinho com o salto do pé esquerdo levantado, sendo que o peso do corpo estaria para o lado direito e eu preciso voltar com a planta do pé direito imediatamente para fazer a troca para o golpe do pé esquerdo de novo cruzando por trás da perna direita e ainda finalizar com três saltos do referido pé direito.
Não racionalize tanto...
Eu não consigo.
Ai...
É que quando eu olho para o espelho tenho a leve impressão de que estou fazendo tudo ao contrário, entende?
Então não pense, apenas sinta o sapateado.
Professora...
Ahn?
Se eu pensar eu caio.

6 de agosto de 2009

terra vermelha

Eu e Lili íamos todos os dias à venda do turco. Minha mãe o chamava de turco, palavra imediatamente replicada por mim, mas hoje tenho convicção de que tratava-se de um cidadão libanês. Portava um bigode vistoso – assim como sua rechonchuda filha – e apontava para nós suas olheiras enormes e o nariz adunco de seus antepassados. Íamos de bicicleta, umas bicicletinhas de criança pequena, velhinhas, meio desconjuntadas. Na terra vermelha das ruas sem calçadas, canteiros ou asfalto, sumíamos em nuvens de redemoinhos, que havia muitos naquela época. Manifestávamos nossa presença depois que a poeira baixava e assim éramos vistas, de tempos em tempos, como crias de sacis. Enfiávamos as mãozinhas imundas nos bolsos e puxávamos moedas: um cruzeiro com sorte, cinquenta centavos frequentemente. Então atravessávamos a loja escura, cheia de barris de madeira abarrotados de farinhas e grãos, desviávamos das caixas com legumes e verduras, e nos esgueirávamos em direção ao balcão à procura de doces.

O baleiro giratório do armazém do turco ainda rebenta em meus melhores sonhos. Dentro dele, balinha Malukinha de uva e menta, chiclete Ploc e Ping Pong, paçoquinha de rolha, doce de abóbora em forma de coração e de banana cremoso-duro, que vinha dentro de um potinho de casquinha de sorvete, com pazinha para comer. Também tinha maria-mole cor-de-rosa e amarela, que a Lili comia sempre, vindo exibir a língua em Technicolor. Pagávamos e ganhávamos as compras dentro de saquinhos como os de pão, só que bem pequenininhos.

Do outro lado da rua havia uma loja de animais. Nossa rotina diária consistia nisso: primeiro compromisso, doces na venda do turco e segundo, visita aos bichinhos. Gostávamos de afagar os coelhos e alimentar os porquinhos-da-índia com capinzinho colhido ali na frente - Brasília na década de setenta era pura terra e mato. Lá se vendia até pombos, até galinhas e pintinhos, até cágados em aquários! Aquilo era o paraíso para menininhas de sete anos. Mas tínhamos outros afazeres importantes a cumprir para a tarde.

Pular amarelinha riscada com giz de gesso que achávamos jogados nas obras – também havia obras pra todo lado –, e competíamos usando casca de banana em vez de pedrinhas. Brincadeira de imitar “As Panteras” da tevê e todo mundo queria ser a Kelly, que era uma só. Acompanhar as formigas e catar algumas para fazer experiências com álcool de limpeza ou simplesmente descobrir se elas sabiam nadar. Subir na árvore de seiva que dava nódoa na roupa, o mais alto que pudéssemos – a Lili subia mais que eu. Fazer bolo de areia e flores no parquinho que o porteiro do prédio construiu sozinho, com o carinho de um confeiteiro.

Andávamos aquilo tudo sozinhas. Nossos pais nunca souberam por onde brincávamos. Sei só que no começo da noite ouvia um assobio característico ou um grito da janela do quarto andar: “Maaaarcya! Sooobe!” Despedía-me da Lili, deixando tacitamente acordada a agenda para o dia seguinte. E ao entrar em casa tal e qual uma escultura de barro, era obrigada a pular direto na banheira cheia d'água, que sempre ficava vermelha, vermelhinha, como a terra da minha infância.