23 de novembro de 2006

o sorriso

Eu queria que o sorriso saísse
Mas ele não quer.
Está preso aqui
Em algum lugar entre o estômago e o coração,
Agarra-se nas alças dos intestinos
Empurra os pulmões com os pés
E não sai de jeito nenhum.
Quando peço, com toda a educação,
Ele berra lá de dentro pra mim
Eu não vou, eu não vou, eu não vou!
Parece até criança de birra
De tanto que me desafia e ofende esse sorriso.
E eu que me sentia vazia
Descobri que o tenho aqui, preso e choroso,
Contrariando a vontade da alegria que ele deveria ser
E o ofício de se mostrar assim
Para quem o quiser ou pedir.

18 de novembro de 2006

auto-retrato

Eu pensei que a vida fosse tão bonita
Quanto um quadro de Van Gogh.

Que o jardim de íris existisse de verdade,
Num lugar que eu iria conhecer um dia
Apesar da flor branca,
No meio de tantas azuis.

Que aquele quase choro que vi suspenso
Bem no olho do retrato,
Tão sentido da incompreensão do mundo,
Poderia ser de pura alegria.

Que os girassóis enlouquecidos de medo
Brincavam de ser fogo vivo
Para fugir do escuro que não são
Ao crepitar de calor.

Que os tentáculos do céu estrelado
Viriam acariciar os ciprestes apontados
Que ali desenharam cometas
Em convulsão de galáxias.

Que os corvos voariam para muito longe
Sumiriam para sempre no horizonte lilás
E os campos de trigo brilhariam novamente
Como o sol do meio-dia.

Eu pensei que a vida fosse tão bonita
Quanto um quadro de Van Gogh.

E ainda quero acreditar
Que não me enganei.

15 de novembro de 2006

candidatura

Candidata alta, solteira, simpática
Dispõe-se a uma vaga.
Você, que elege,
Tem que me escolher!
A minha plataforma
Está no armário, não se preocupe.
E tenho propostas
Realmente interessantes...
Pro seu governo, eleitor,
Vote em mim!

8 de novembro de 2006

fábula











Meu amor é inútil
Pois o tenho aqui sem uso.
É uma sensação que a cigarra velha
Encasulada anos e anos debaixo da terra
Deve ter tido, meditando,
Tanto tempo à espera só
Na sofreguidão do ar...
A cantorinha sonha com o dia em que
Numa manhã madura
Irá se desencavar
Depois de muito sacrifício
E chamar por seu amor
(Ela chama por seu amor!)

Que nem sempre vem.
Algumas conseguem que ele tenha
Ouvidos de escutá-las
E morrem felizes na esperança das pupas
Que vão levá-las a uma nova história
Por mais tempos e tempos.
As outras continuam cantando bolerões
E lacrimejando
Todas as primaveras
Nas esquinas dos jardins deflorados
Até sumirem nas artes das crianças
Na pressa dos carros nas ruas
Ou nas garras de um gato brincalhão.

3 de novembro de 2006

a teia












Uma aranha fez sua teia em meu nariz.

Se estabeleceu calmamente na ponta
Avaliou a vizinhança
Viu que era tão tranqüilo que poderia sossegar.

E aqui está, a teia dela
Delicada e intocada
Já se faz uns bons meses...

A aranha está muito satisfeita.
Mas eu não!