27 de dezembro de 2007

o que faltou

Faltou espaço.
Faltou tempo.
Faltou ar.
Faltou amar.

Faltou respirar brisa do dia.
Faltou caminhar de olhos fechados.
Faltou confiança e eu sabia
Que faltava olhar para os lados
E enxergar.

Faltou dizer tudo pra quem eu amava,
Mas minhas palavras estavam em falta,
E na hora faltou coragem.
Por outro lado, faltou calar na hora certa,
Que pra isso também é preciso coragem
(Acho que foi ela que mais me faltou).

Faltaram novos filmes, novas músicas.
Faltou pouco para um beijo - ou dois.
Faltaram mãos dadas.
Faltou uma despedida.
Faltou dizer sim
Dizer não.
Faltaram verdades.
Faltou superar
(Pra isso, faltou vontade).

Vi que faltou paciência – essa sempre falta.
Faltaram respostas, porquês, motivos.
Eu sei que faltou sair de casa, ver pessoas, ir pra rua.
Tentar.
Faltou socializar.
Faltaram oportunidades.
Faltou dinheiro.
Faltou um rumo,
Pela falta de alternativas.

Só o que sobrou
Foi a falta grande que eu sinto
De tudo o que faltou
Sobrar no ano que vem vindo
Pra recomeçar a vida
Sem falta
Outra vez.

25 de dezembro de 2007

da fina arte de laminar amêndoas


















Compre as amêndoas – caríssimas - mas não muitas, para sobrar um dinheirinho para o peru. O suficiente para encher meia xícara de chá, o que, provavelmente, contará umas cinqüenta amêndoas.

São diminutas, muito duras, enrugadinhas, protegidas por peles morenas que, infelizmente, é necessário tirar, ainda que pareça impossível. Por isso, não se deixe intimidar. Chegando à cozinha, prepare-se para cuidar delas. Isto demanda tempo.

Numa panela, coloque água e leve ao fogo alto. Quando ferver, desligue. Acrescente as amêndoas e deixe aferventar por três minutos. Cronômetro.

Prepare uma outra tigela, esta com água e gelo. Passado o tempo, desfaça-se da água fervida e transfira as amêndoas quentes para boiarem junto com os cubinhos gelados.

É o choque térmico que faz com que a pele das meninas se solte. Uma pena. Ou melhor, um peeling. Deixe esfriar por dois minutos. Cronômetro. Assim, ficam geladas.

Em seguida, retire as peles. Bronzeadas que eram, tornam-se brancas, dessas mais frescas, que passam bloqueador solar até à noite. Contudo, é preciso dizer: as rugas continuam ali.

As capinhas ficam soltas, como um balãozinho murcho, mas não saem sozinhas. Com a ponta de uma faca pequena deve-se furar e puxá-las com cuidado, uma a uma, delicadamente, das cento e cinqüenta amêndoas. Neste ínterim, preaqueça o forno a 160ºC (temperatura baixa), por dez minutos. Termômetro. Cronômetro.

Depois de descascadas, ou peladas, ou despeladas, ou escalpeladas, ou escaldadas, ou produzidas por tratamento estético, organize as mil e quinhentas amêndoas numa assadeira.

Coloque-as dentro do forno - desligado - por dez minutos. Cronômetro. Ah, chacoalhe a assadeira de vez em quando para que elas se animem um pouco e assem por igual.

Tempo findo, diga às garotas que a sessão de bronzeamento artificial acabou – afinal, fizeram descamação pra quê? Organize todas elas em cima de uma tábua e peça para ficarem quietas – mulheres quando se juntam...

Agora sim, tem início o verdadeiro trabalho artístico. Com um bisturi, digo, uma faquinha, muito afiada, comece a cortar as cem mil e quinhentas amêndoas em lâminas bem finas.

A princípio, você vai laminar os dedos com mais facilidade que as amêndoas. É que eles são mais macios. Mas não se preocupe. Depois de partir um milhão e quinhentas mil delas, é possível cortar uma única, com cerca de 1cmx0,5cm em pelo menos oito pedaços. Cuidado para não ser soterrado.

Depois de terminado, aprecie no arroz metido a besta, na salada sofisticada, na decoração da sobremesa.

E lembre-se alegremente: ainda tem que preparar o peru, que é um só!

17 de dezembro de 2007

o miado

Comecei a ouvir um miado estridente de filhote. Num instante, mais de mil havia ao meu redor, a gritar de desespero, numa esganação de fome. Eram muitos e eu uma só. Estranhamente, não se exasperavam nem brigavam uns com os outros. Não arranhavam nem corriam. Apenas andavam em círculos e miavam em súplica.

Virei-me na cama com a lambida de lixa de meu gato de verdade, que tinha vindo se aninhar mais perto, enquanto eu não recuperava a consciência do despertar. Os berros vinham de fora.

Fiquei um tempo acordada olhando para o teto escuro, imaginando como eu me sentiria se aquela criatura morresse ali sozinha, sem que ninguém tivesse feito nada por ela. Maldita consciência, a uma hora dessas! Olhei o relógio: quatro da manhã. O meu sentimentalismo fracote achou que era cedo demais para um surto.

Mas o bicho continuou lá, naquela sinfonia dos aflitos, apelando para a minha compaixão e para o desafino da dor nos meus ouvidos. A coragem me empurrou num pulo. Enfiei uma roupa, coloquei leite num potinho e desci, de caixa de sapatos à mão. É, eu estava disposta a tudo.

O porteiro me disse que o bichano ficava correndo de carro em carro no estacionamento. O último que chegasse, mais quentinho, era o escolhido, até que o frio viesse de novo. Perguntei por uma lanterna. E lá fui eu, me postar de quatro no chão para olhar debaixo de todos os estacionados até encontrar o gatinho.

O descobri preso no motor de um jipe, arisco, em pânico de se perceber notado. Desliguei a luz e fiquei esperando, quieta. Quando desceu, cinzento, magrinho, estiquei o braço para pegá-lo. Mas ele foi mais rápido – sempre são! Fugiu para outro carro e eu voltei a minha abnegada tarefa, com toda a paciência que nunca tive.

Foi assim até umas cinco e meia mais ou menos, quando o dia já ia clareando. Exausta, desisti da luta e me rendi ao instinto felino, mais ágil e mais esperto que eu. Sei também que o sofrimento é um aprendizado. O bichinho deve ter levado uns tantos chutes na vida breve que teve até ali. Generalizou os seres humanos e para ele, todos eram apenas cruéis.

Subi no elevador pensando em nossa derrota, afinal, perdemos ambos. O gato se foi. Mais um dos tantos gatos que se foram da minha vida. Só espero que, pelo menos este, pare logo de me acordar à noite, a me atormentar com sua lembrança esgoelada.

13 de dezembro de 2007

carta para o papai noel

Caro Papai Noel,

Eu nunca acreditei em você. Desculpe falar assim tão secamente, mas é a verdade. Eu era uma criancinha de quatro anos esclarecida, materialista e pragmática. Isso já prenunciava minhas convicções ateístas da idade adulta. Não se magoe. É apenas uma constatação. E preciso confessar ainda que só resolvi escrever esta carta num momento soporífero, de insônia terminal e pestanas entreabertas. Gosto do Natal só porque é feriado – os aeroportos ficam lotados. Sim, claro, porque come-se bem - uma comilança desenfreada. E tem a parte dos presentes - um desespero nas lojas.

Não se preocupe; eu não vou fazer nenhum pedido. A minha loucura não chega a tanto. E, afinal, já disse, nunca acreditei mesmo em você - mas que mulher deveria acreditar nos homens, não é? Além de tudo, meus desejos são pura retórica, enfeitados com bolas coloridas de pessimismo e estrelinha de descrença no topo. Vou vagando pelo deserto da existência, simplesmente, sem enxergar luzes que me guiem os sentidos até uma salvação.

Pedidos são para os que têm fé, essa misteriosa. Não tenho a menor pretensão de atendimento metafísico a curto prazo, muito menos até o clímax das comemorações natalinas – mesmo porque, se nesse tempo algum pedido meu se realizasse, já poderíamos considerá-lo um verdadeiro milagre. Eu disse milagre? Ora, senhor Noel...

Perdoe-me novamente, mas ainda não sei ao certo como devo tratá-lo, talvez por falta de experiências anteriores nesta arte surrealista de dirigir-me a entidades impalpáveis – se bem que até agora o Brad Pitt também tem sido bastante impalpável para mim. Nunca pensei em que categoria o senhor – preciso chamá-lo assim? – talvez pudesse se enquadrar. Na dos santos católicos? Na das peças publicitárias para vender refrigerante? Na das figuras mitológicas? Na dos velhinhos excêntricos? Na dos seres sobrenaturais das datas comemorativas (no que é acompanhado de perto pelo Coelhinho da Páscoa)?

Enfim... Seja qual for seu pronome de tratamento, de antemão me sinto ridícula, a investir nesse diálogo solitário entre desacreditados. Não são só as cartas de amor que produzem esse efeito. Mas tenho a desculpa onírica do sono que me ronda e por isso, a esta hora da noite, me dou o direito de escrever o que quiser.

Não vou pedir mais desculpas. Sei bem o quanto erro todos os dias, da mesma forma que tenho consciência de que as crianças supostamente desobedientes são punidas com crueldade: ganham de presente de Natal o desprezo do bom velhinho, não é isso? Estou cansada de ameaças.

Liberte-se também, Papai Noel. Esquece essa obrigação. Desmancha essa ruga feia da vingança. Se livra desse fardo a carregar nas costas por toda a eternidade. Você vai se sentir muito melhor. Pode acreditar em mim.

Com afeto,
Marcya

4 de dezembro de 2007

uma questão de lógica

Isso acontece com certa freqüência.
Uns caras me mandam fazer uma coisa para um outro cara ficar feliz.
Vou lá, enfio a cara e faço.
Aí, os caras que me mandaram fazer a coisa para deixar o outro cara feliz, ficam imaginando que talvez a coisa ainda não o deixe feliz o suficiente; não tão feliz quanto ele poderia ficar.
Então, os caras me mandam refazer a coisa, com várias inserções de coisinhas que eu realmente não sei para que poderiam contribuir com a felicidade do outro cara.
Eu argumento com os caras que me mandaram fazer a coisa que seria melhor, antes de tudo, mostrar a coisa inicial, para ver se o outro cara vai ficar feliz ou não.
Mas os caras que me mandaram fazer a coisa não me ouvem. Agora eles querem a coisa do jeito deles, da forma como eles acreditam que poderiam fazer o outro cara super-mega-ultra feliz.
Interessante.
Com cara de poucos amigos, eu calo a minha boca, vou lá de novo e refaço a coisa, do jeito que os caras que pediram a coisa para deixar o outro cara feliz queriam.
(Detalhe: o outro cara – o que precisa ficar feliz – nem entrou na história ainda)
Bem.
Estava na cara que a coisa ia pegar.
Eu mostro a coisa modificada sob encomenda para os caras que pediram a coisa para tornar o outro cara feliz. Só que as mudanças deixaram a coisa enorme! Eu já sabia – e avisei aos caras antes – sobre essa latente possibilidade.
Para livrar a cara, os caras que queriam deixar o outro cara feliz me mandam reduzir a coisa que, grande daquele jeito, não ia caber em lugar nenhum. Foi quando eu disse que a coisa estava reduzida antes e que só ficou enorme porque eles – os caras – me mandaram mexer nela.
É.
Finalmente os caras que queriam o outro cara feliz resolvem falar com o cara cara a cara, para checar se ele ficaria feliz logo de cara, como eu imaginei desde o início. Resultado: os caras levam para o outro cara a primeira coisa de todas as que eu fiz.
O outro cara que devia ficar feliz vê a coisa curta mesmo... E fica feliz.
Com a cara no chão, os caras que me mandaram refazer a coisa cinco vezes para o outro cara ficar feliz, dão a cara a tapa: "quebramos a cara".

Ah, eu mesma nunca vi o outro cara pessoalmente. O que ficou feliz.
Mas acho que ele vai ficar feliz porque eu existo.
Tou de cara.

(Provavelmente, não é nada disso que vocês estão pensando. N. da A.)

23 de novembro de 2007

ediçãozinha qualquer

Mais ou menos como diria Drummond (se tivesse trabalhado numa tevê):

Câmeras entre fitas
ilhas entre roteiristas
carregar editar renderizar

O time code vai devagar
O set vai devagar
Até o fast vai devagar!
Devagar... Procuro janelas.

Putz, que vida... Que vida!

12 de novembro de 2007

diálogo imprescindível entre dois minúsculos elefantes desenhados





Ei...
Hum?
Ei!
Tá falando comigo?
Estou sim!
Que é que você quer?
Cheguei a uma conclusão.
O que foi?
É pra nossa própria segurança...
O que é? Fala logo!
Acho que não tem mais ninguém lendo esse blog...
Não?
Não.
Por que não?
Porque não!
Mas... E o contador ali em cima, indicando aquelas visitas?
Tou desconfiado que é ela.
Ela?
É!... Ela!
Ela como?
Acho que ela vai em vários computadores diferentes e fica digitando o link do site.
Aaahhh...
E manda spans para as tias que ela sabe que clicam em tudo.
Será?
Coloca fotos e envia o link para os amigos verem de vez em quando, como pretexto.
É... Pode ser... Isso faz sentido...
Na verdade não tem ninguém lendo não.
Mas você tem provas disso?
Tenho.
E cadê as provas?
Aqui embaixo.
Onde?
Nos comentários.
Que comentários?
Isso mesmo, não há comentários!
Ohhhh!...
Há muito tempo ninguém faz comentário nenhum!
Mas tem um "Anônimo" que vez ou outra solta alguma coisa.
Estou desconfiado...
Desconfiado de quê?
De que o "Anônimo" é ela!
Ela?
É!... Ela mesma! Simulando um leitor, como desculpa pra continuar escrevendo!
Puxa vida!... Você tem razão... É possível...
Então!
E agora? O que faremos?
Bem... Vamos rezar para o "Anônimo" continuar aparecendo... Assim a gente tá salvo!
E se o "Anônimo" sumir de vez?
Aí...
Aí???
Terá sido um prazer conhecê-lo.

7 de novembro de 2007

remember the king

Há alguns anos, fui conhecer Buenos Aires. A capital argentina me encantou em seus recantos, pela cultura e pela arte, pelas histórias fortes de poder e queda, por seus habitantes cheios de gentilezas e críticas, pela majestática decadência das ruas. Fiz o trajeto típico do bom turista: Casa Rosada, Plaza de Mayo, Recoleta, La Boca, Malba... Remexi tudo por ali.

Foi assim que, cansada, depois de muito andar pela Calle Florida, entrei em uma pequena lanchonete. O lugar estava tranqüilo, quase vazio. Pedi um café com creme, que veio rápido e me perfumou a alma, num buquê de espuma espessa. Esse cheiro todo magnético, mágica dentro de uma xicarazinha, me cativava entre todos os prazeres simples.

Como de costume, peguei a colherinha e ataquei primeiro o chantilly todinho, na frente, de entrada. Agora sim, o açúcar. Muito. Mexe. Prova. Que bom!...

Bem mais adocicada e aquecida, olhava para o movimento lá fora, através do vidro imenso da vitrine. Me distraí no transe do cheiro gostoso da bebida e comecei a cantarolar baixinho a música que sempre me vem sem querer quando estou feliz assim: “Wise men say... Only fools rush in... But I can’t help falling in love...With you...

“Também adoro começar pelo creme”. Olhei na direção daquela voz única. Vinha de um homem velho, que tomava o mesmo que eu, sentado à mesa ao lado. Balancei a cabeça, cantos da boca numa curva ascendente, em cumprimento, e me calei.

Devia estar perto de seus setenta anos e parecia ser alto. Os traços delatavam uma beleza envolvente, aliás, num passado nem tão afastado assim desses dias frios de junho. Os cabelos brancos formavam entradas largas sobre os olhos claros de tudo e, engraçado, de sobrancelhas escuras. Certamente tinha algo de extravagante, pois notei que, vestido de preto, calçava sapatos azuis, de camurça. Falava a língua da terra com um acento diferente, quase tão estranho quanto o meu. “Hola, señorita. Perdóname la audacia. Mi nombre es Aaron”, disse, sorridente. Aaron. Tinha um sorriso perfeito, puxado um pouquinho para a direita.

“Olá, senhor! Não se preocupe... Eu sempre começo com o chantilly porque o sabor é mais suave. Misturado ao café o gosto bom do creme some todo!”

“Verdade, verdade. É assim que faço também...”

Ficamos nos analisando, durante alguns segundos decisivos. Não sei dizer porque, mas o olhar direto daquela figura estranha me constrangia. Num debate interno à procura forçosa de uma resposta, fui fulminada por um flash de memória que incomodou. Ele me pareceu familiar.

“A senhorita não é argentina, suponho.”

“Não, não, realmente não sou.”

“Norte-americana?”

Achei graça da confusão. Meu espanhol devia estar uma droga... “Não. Eu sou vizinha, aqui do lado. Brasileira.”

“Ah, brasileira... É uma pena; eu nunca estive no Brasil, senhorita...”

“Marcya.”

“Senhorita Marcya.”

“Mas, tão pertinho, não vai faltar oportunidade, não é?”

“Bem, digamos que eu já esteja muito velho para viajar.”

“Velho? O que é isso? De jeito nenhum; o senhor está ótimo!”

Seu rosto se tornou todo alegre, pela ênfase da última frase.

“Faz tempo que não ouço um bom elogio de uma moça bonita! Às vezes faz falta!...”

Senti-me um pouco envergonhada. De repente me peguei praticamente flertando com um sujeito que encontrei à toa na rua e parecia ter mais idade que meu pai. Não sei o que me deu. Mas a verdade é que estava fascinada por ele. Nunca eu tinha visto antes, tão de perto, um carisma de tantos tentáculos, a me arrastar para dentro das pupilas cerúleas, da voz rouca e melodiosa, do café quente com creme. Agora não podia mais parar.

“O senhor também não é argentino...”

“Eu sou uma ponte cruzando águas tortuosas, querida. Um homem do mundo... Trancado em mim mesmo.”

“Posso adivinhar?”

“Adivinhe então; gosto desses desafios...”

“Ahn... Norte-americano?”

Consegui deixá-lo desconcertado. “Muito perspicaz! Muito perspicaz... A senhorita sempre faz adivinhações tão precisas?”

“Pode me chamar de você”, limitei-me a responder.

“Obrigado. Chamarei sim, com muita honra.”

Ele agora parecia um tanto desconfiado de mim. Olhou o relógio, que marcava quatro da tarde.

“Conheci tantas mulheres na minha juventude, tantas, tantas, e continuo um garoto na tentativa de entendê-las...”

“Não é preciso entendê-las. Basta descobrir como elas gostam de ser tratadas. É a chave do segredo”, falei baixinho.

“E como elas gostam de ser tratadas?”

“É como diz a canção: ‘Don't be cruel... To a heart, that's true…

Dessa vez, o homem ficou realmente preocupado e levantou-se, subitamente. O meu subconsciente me pregara uma bem armada peça.

“Preciso ir embora agora... Me demorei demais aqui. Mas a companhia justificou tanta atenção. A senho... Você... É uma moça encantadora!”

“Senhor... Já não o vi antes em algum lugar?”

“Talvez... Quem é que pode saber?”

Um relance de lembrança correu outra vez na minha frente, brincante, fugitivo, querendo me confundir. Voltei aos meus seis anos de idade, a um noticiário de tevê, a um disco de vinil tocando no volume máximo, a lágrimas sentidas. Comecei a rir. Tudo isso era uma grande loucura. Não podia ser.

You were always on my mind”, arrisquei, numa saudação amorosa de profunda reverência.

O homem virou-se, um tanto surpreso, beijou minha mão com carinho e ofereceu aquele sorriso lindo aos meus olhos molhados, pela última vez.

I’ll remember you”, respondeu ele.

Colocou os óculos escuros, baixou a cabeça e saiu pela porta de vidro caminhando sem pressa, até sumir no meio da multidão da calle, deixando para sempre dentro de mim o sabor doce do creme e o cheiro inesquecível do café daquele lugar.

3 de novembro de 2007

joaninhas impossíveis


Quando eu era menina, de assim uns sete anos, tinha uma coleção de joaninhas. Esse bichinho pintado, que vivia aos mil nas plantinhas dos anos 70, e por isso podia até ser colecionado, de repente sumiu de junto do olhar da gente. Não sei se foi porque eu cresci e passei a reparar menos nessas pequenezas bonitas que as crianças enxergam. Mas acho que não.

Aliás, penso até que percebi o primeiro sinal do estapafúrdio que virou o clima do planeta quando voltei à árvore da minha infância e procurei, procurei, procurei... Achei uma, uminha só. A última joaninha.

Antes não. Nas árvores por aí, em especial nas amoreiras, encontrava delas aos montes, dezenas, com manchinhas variadas na carapaça das costas. Brancas com pintinhas pretas. Pretas com pintinhas vermelhas. Vermelhas com pintinhas pretas. Que alegria boa que me dava de achar as cores todas num mesmo dia!

Pegava a caixinha de fósforos vazia, daquelas com um olho desenhado no rótulo. Forrava com folhinha de amora e ia caçar. Olhava para cima até ficar de pescoço doído. Catava com carinho e elas retribuíam passeando nas mãos, passadas de uma pra outra, fazendo cosquinha, perninhas rápidas, obedientes, sem voar. Mesmo assim, eu as colocava dentro da caixa e levava pra casa. Acho que ninguém nunca soube. Pode parecer maldade, mas não era não.

É que me vinha uma felicidade que se derramava em sorrisos, isso só por vê-las passear pela superfície lisa do vidro de maionese onde eu guardava amorosamente a minha efêmera coletânea. Durava apenas um dia. Um dia, que era o tempo que eu achava justo aprisionar uma joaninha. De manhã, me levantava cedo e as libertava todinhas pela janela. Ficava olhando cada uma despertar, esticar as asinhas e partir num zumbidinho surdo. Em segundos, desapareciam no azul do céu, no vermelhão dos redemoinhos daquela época, no verde aventureiro que escalava até o quarto andar do prédio.

Desde então, creio que desenvolvi um contato extra-sensorial com as joaninhas, como se fosse teleguiada. Elas é que me aprisionavam agora. Nos cantos mais bizarros do mundo me deparo com uma. Uminha só.

Há dez anos, em Tanger, no Marrocos, entrei num navio para fazer a travessia até Algeciras, na Espanha, vinda de uma primeira viagem ao deserto. Estava muito bem no convés, olhando a água que se alastrava perfeitamente ao redor da embarcação, como tem que ser, sem vista de terra firme. Vai daí que sinto a familiar cosquinha no braço. Olho, era uma joaninha, uma joaninha mesmo, que achou de pousar em mim ali, no meio do oceano. Brinquei muito com ela, como de costume. Não voou. Tirei fotos, mas o close da joaninha não ficou muito bom. Houve quem não acreditasse.

Em Roma também, já se faz nem sei quanto tempo. No meio das ruínas antigas, eu com um mochilão nas costas - acho que me confundiu com uma delas, super-ultra-mega desenvolvida.

Mais uma apareceu na capital de Botsuana, Gaborone, num passeio ao parque local. De janelas abertas, nem desci do carro, lá vem a bolotinha voadora. Aterrissa no meu ombro, como o papagaio do pirata. Faz nada não. Deixa ela aí. Meu cabelo tá preso. Eu não capturo mais joaninhas.

A última foi a que notei no casaco branco de minha mãe, no meio da multidão de uma loja de departamentos em Madrid. Mas houve outras, muitas outras, que já nem me lembro mais.

Talvez elas façam parte de uma sociedade secreta, da confraria das joaninhas que pretendem salvar a Terra - tomara que consigam. Eu, que não tenho fé em nada, com elas, ao contrário, sempre tive certeza de que carregavam algo de especial. E continuo a acreditar. Talvez o meu papel nesse plano seja o de escrever essas coisas. E talvez se possa dizer – e claro, digam sim! - que eu sou alegremente manipulada por joaninhas impossíveis.

1 de novembro de 2007

Mar se há

Olha, eu não vou à praia porque não posso, porque a praia fica longe.

Mas eu gosto do gosto do sal na boca depois do mergulho
Da dormência que a areia traz no crepitar na pele
Da água quente aqui dentro
Da espuma esfinge
Das conchinhas perdidas por seus moluscos
Do ventinho, contando umas piadas
Do mordiscar das ondas nas pernas
Do enterrar dos pés aos pouquinhos
Daquele cheiro de maresia
Que me leva de volta ao lar.

31 de outubro de 2007

a gincana




















Não sabíamos ainda, mas ela estava começando, secretamente, naquele exato momento. Um cronômetro misterioso disparava a cada vez que os guias diziam “vocês têm quarenta minutos para visitar todos os monumentos, tirar fotos e almoçar. Nos encontramos aqui no ônibus”. Ainda por cima, eles falavam em portunhol. Ou, pior, em espaguês. Descobri. Era um código.

Um deles se chamava Jesús. “Aquele que me seguir, encontrará o caminho”. Em verdade vos digo: fiquei preocupada quando alguém comentou “Jesús está chamando”. E respondi: “é cedo. Não é chegada a hora”. Todos os guias tinham nomes de anjos. Miguel, Rafaela... Tudo bem que um se chamava Alejandro. Mas, por quê?

Comecei a desconfiar quando, ao chegar ao hotel, na primeira noite em Barcelona, liguei a tevê do quarto e começava, naquele segundo preciso, o primeiro capítulo da última temporada de Lost. E eu ainda não tinha visto. Foi bastante esclarecedor para mim.

Outros fatos enigmáticos continuaram a ocorrer, sucessivamente, naqueles dias. Minha mãe estava saindo de uma loja de departamentos no centro de Madri, às oito da tarde – é, oito lá é tarde –, as ruas tão lotadas que não dava pra ver o chão. Por minutos a perco. Procuro com os olhos, de meu mirante privativo e, ao distingui-la, de costas, casaco branco no meio da multidão, me aproximo e encontro o improvável: uma joaninha rechonchuda, caminhando tranqüila pela superfície de lã. Uma joaninha. Só podia ser um bônus.

Em todos os lugares aonde íamos, mal colocávamos o pé fora do ônibus turístico, sinos de igrejas badalavam. Acho que era um aviso da organização. Ou então, só colocávamos o pé fora do ônibus em horas cheias e meias.

Visitamos o Escorial, que é ao mesmo tempo mosteiro, igreja, palácio e túmulo de Felipe II da Espanha, erigido em homenagem a San Lorenzo “aquele que morreu na parilla” segundo a aparentemente inofensiva guia. Ela repetia a informação a cada minuto e fazia questão de mostrar as grelhas de churrasco representadas em detalhes da decoração. Muito revelador. Chegamos ao lindíssimo altar-mór quando soaram os acordes do órgão secular, obra-prima do gênero. A mulher virou-se para nós, solene, e disse: “incrível. Magnífico. Este órgão quase nunca é tocado”. E enfatizou: “quase nunca”.

Numa cidadezinnha chamada Évora, nossa primeira paragem em Portugal, nossos guias nos fizeram andar um bocado na companhia deles, para depois nos largar no meio de uma praça e condenar: "São quarenta e cinco minutos aqui. Vamos nos reencontrar lá no ônibus". Para o Minotauro seria moleza. As labirínticas ruelas nos conduziam a becos sem saída e lugar nenhum. Matei a charada. O lugar mais comentado pelos guias no caminho foi a tal Capela dos Ossos. É pra lá que nós vamos.

O nome "Capela dos Ossos" era literal. Na entrada, a mensagem de boas-vindas: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos". Maravilha. Minha mãe se sentiu mal lá dentro. Milhares de crânios, tíbias e perônios, rádios e cúbitos, costelinhas, carpos, metacarpos e falangezinhas, entre outros, davam o toque bizarro à decoração. Ouvi um sussurro com a voz de Jack Pallance no meu ouvido: "acredite... Se quiser".

Entre todas as experiências pouco convencionais, também não foi pouco estranho que eu e mamãe tenhamos sido expulsas do Oceanário de Lisboa no meio do passeio porque Vladimir Putin, presidente da Rússia, tinha ido visitar os peixinhos exatamente naquele dia, acompanhado de um exército da KGB – claro que ainda existe – que mais parecia os homens de preto, vestidos de terno e óculos escuros? Bem que quando chegamos achei esquisitos os barcos da polícia, o pessoal do serviço de inteligência portuguesa (ai, Jesús!), os helicópteros imensos e as metralhadoras carregadas pra todo lado. Peixinhos... Sei.

A última prova começou na Torre de Belém. Fomos severamente informados: “neste Café aqui ao lado há o único banheiro desse passeio de duas horas. O único. Depois não digam que eu não avisei...” Nesse instante, senti que foi dada a partida. “Vocês têm trinta minutos para conhecer a Torre, tirar fotos, e voltar para o ônibus a tempo para o Mosteiro dos Jerônimos. Ah! E não se esqueçam da sala de banhos...” Percebi um leve sarcasmo nessa frase final.

Antes da Torre, corri para o banheiro, afinal, ele era único e bem disfarçado. O monumento
eu já conhecia e ia ficar lá, pelos tempos afora, se mostrando pra todo mundo. Dava pra tirar uma foto de longe. De mais a mais, naquele momento específico, nada era mais monumental que o banheiro.

Na corrida descobri que o acesso era gratuito somente àqueles que tomassem pelo menos uma bica, ahn, café expresso. Droga! Filas enormes no balcão; meus concorrentes saíram na frente. Isso não vai ficar assim. Perguntando, descobri uma máquina que vendia fichas para uso exclusivo do troninho. Cinqüenta centavos. Cinqüenta centavos? Cadê essa moeda maldita? Vasculha, vasculha, vasculha!

Minha mãe veio salvar a pátria com um euro e direito a duas descargas consecutivas. Na hora de puxar a fichinha, veio um angolano correndo. “Não, não, não usem isso não!” Pronto. Mais surpresas da engenhosa competição. Que é que você quer? Aonde você vai? Volta aqui! Não usa por quê? Desgraçado. O angolano fugiu correndo de novo. Do jeito que a coisa está, acho que vou trapacear.

Funcionário do Café, ele volta logo, com uma ficha personalizada, encaçapa o euro mais que depressa e passa duas vezes o código de barras que libera a entrada. Entendi tudo. Decifrei a senha. Olhei para meus adversários na bicha, ahn, fila, e tive vontade de mostrar a língua. A peça final estava garantida. Mas nada se encaixava ainda.

Cumprimos todas as tarefas, com louvor. Ainda busco pelo prêmio, mas algo me diz que ele já está conosco. Estamos aqui: vivas, sãs e salvas, com todas as relíquias escondidas nas retinas e nas máquinas fotográficas.

14 de outubro de 2007

Odeio. Adoro.

Levantei de mau humor.

O telefone tocou às dez da manhã e, de repente, me dei conta de que já eram onze. Era a minha tia, querendo dar os parabéns. Odeio aniversário. Odeio acordar tarde. Odeio horário de verão, ainda mais na primavera.

Tive insônia. Acho que devo ter dormido de fato às quatro da madrugada, digo, cinco. A geladeira estava completamente vazia. A única sobrevivente, aliás, já nas últimas, era uma maçã. Não sei o que me deu que comprei essa maçã. Odeio maçã.

Eu tenho que arrumar a mala. Viajo amanhã e a minha casa está uma bagunça, que é algo que odeio. Vou com a minha mãe para a Espanha, de excursão. Odeio seguir guarda-chuvas. Tive dor-de-barriga só de pensar em entrar num avião. Quanto mais rodo o mundo, menos gosto. Odeio avião. Não tem ninguém pra levar a gente e vamos ter que ir para o aeroporto de táxi. Odeio táxi.

O Gato não está aqui e sinto falta dele e de suas reclamações. O costume me faz ficar na espreita, andando na ponta dos pés, com medo de pisar no rabo dele a qualquer momento. Tropecei no ratinho de brinquedo e meu coração disparou. Odeio essa sensação.

Fui almoçar fora, só eu e minha mãe, porque meu pai come num restaurante natural que eu realmente odeio, e não há data especial que o demova dessa idéia fixa. O peixe tinha algumas espinhas. Odeio espinhas. Todas elas.

Hoje vai passar na televisão uma droga de jogo de futebol do Brasil, contra não sei quem, eliminatória da Copa do Mundo. Odeio televisão. Odeio futebol. Odeio os fanáticos por futebol, que ficam berrando e soltando rojão no domingo. Odeio domingo.

Eu odeio pensar naquele Smurf Ranzinza (Smurf... Odeio lembrar dessas coisas que mais da metade do planeta nem sonha que um dia existiram), que vivia repetindo “eu odeio” e associar essa diminuta criatura azul a mim mesma. Odeio o Lula Molusco. Odeio o Patolino. Odeio o Zangado da Branca de Neve. Odeio maçã. De novo.

Estou com TPM, sim, aposto que foi isso que você pensou (odeio quem pensa isso). Mas essa é apenas uma das milhares de pequenas engrenagens da imensa e complexa estrutura que move o meu mau humor.

No momento, acho que só tem uma coisa que eu adoro (e preciso muito – além de chocolate e sexo, é claro): férias. Féééééériaaaaaaasssss!!!

10 de outubro de 2007

furada

Cheguei em cima das 11, um tantinho apreensiva assim. Afinal, fazia muito tempo que já não acreditava mais nessas coisas. Terapias alternativas, meditação transcendental, iridologia, abdução, sei lá mais o quê. Joguei tudo no mesmo saco. Sofismas. Nada zen me comove.

Agora estava ali, feito uma besta, descrente que nem cartesiano, na ante-sala decorada com aguinha jorrando na fontezinha de pedra, circulinho de yin-yang na parede, musiquinha new age tipo Enya de fundo, caixinha com areia e bolinhas de cristal pra desenhar imagens do subconsciente com o rastelinho. Ahhhh!

Tudo bem, eu queria provar pra mim mesma que poderia estar enganada. Esse negócio aí, criatura, vem de uma cultura milenar! Conhecimento de séculos, percebe? Deve fazer sentido... Pra alguém. Pior que isso seria a fisioterapia, os remédios pra dor. Até que gosto da minha tendinite, acho que é charmosinha, mas ela já estava ficando exibida demais. O medo de pagar um mico foi menor e, apesar de tudo, o plano de saúde estava pagando. Não o mico. A consulta. Talvez os dois.

Olhava para os lados, cruzava e descruzava as pernas, balançava os pés, conferia o relógio, “se demorar mais um minuto, voumembora”. Sim, mais um minuto e o ridículo que eu não queria sentir - mas berrava aqui dentro - ficaria insuportável.

E pareceu até que o escândalo tácito tinha sido ouvido. A terapeuta abriu a porta cinco segundos depois. Senhora bonita, loira, falava um português perfeito, muito diferente do velho chinês de barbas brancas até o pé que eu esperava encontrar. Dizia-se acupunturista.

Ela perguntou tudo da minha vida, feito homeopata. Será que vai diluir as agulhas em água numa proporção de um pra mil? Aí pediu pra ver meus pulsos, os dois juntos, e me mandou mostrar a língua. “Com prazer”. Lancei o olhar nas anotações e deu pra ver que ela escrevia “língua pálida e trêmula”. Pálida e trêmula? De músculo mais vigoroso do corpo humano, transformou-se num Pincher. Que queu tou fazendo aqui?...

Começou a tortura chinesa. “Dói?” Ai. “Dói?” Aaai... “Dói?” Aaaaaaiii!!! Descobri que tudo dói. Mas pensei que isso fosse culpa do ácido lático. Pega agulhinha e tuf! Nas costas. Depois outra, outra e mais outra. Umas dez. Vinte. Depois da oitava pontada perdi a noção. “Agora deita”. Deita? Como assim? Eu não sou faquir não, dona! “Não, não. As agulhas estão atravessadas. Pode vir”. Atravessadas, hein?... Ninguém tinha me falado sobre isso antes. Agora sei como São Sebastião se sentiu.

Deitada lá, com os eletrodos nos pés e nas mãos... Prrrrr... Tuc-tuc-tuc... Prrrrr... Tuc-tuc-tuc... Prrrrr... Tuc-tuc-tuc... Devia parecer um misto de Hellraiser com a noiva do Frankenstein.

Dizem que há quem relaxe – e durma! – enquanto fica ali todo espetado. Mas eu, furadinha de cima a baixo, com a insistência do BG de mantra nos ouvidos, claro, comecei a pensar besteira. E se esse prédio pega fogo? Eu estou aqui deitada de calcinha e sutiã, com agulhas até no crânio. Acho que vi um vídeo desses na Internet outro dia. Saio correndo pela porta desse jeito? Eu tenho sutiãs mais bonitos! E se as agulhadas atingem alguma artéria importante? Será que pode ser perigoso? Rolar uma hemorragia? E se esse aparelho aí entra em curto e me dá um choque? Qual será a voltagem desse bagulho? Ela não falou quanto tempo vou ter que ficar imóvel aqui!

Vinte e nove minutos e trinta e quatro segundos mais tarde, a terapeuta está de volta. Me livra dos eletrodos, dos fios, das agulhas todas, menos uma, dolorosamente descoberta na hora de vestir a blusa. Uuugh... Acho que a senhora esqueceu algo nas minhas costas... “Hihihihihi! É mesmo...” Hihihi. Aposto que uma ou outra devem estar cravadas embaixo da minha pele até hoje.

Para finalizar, sementinhas nas orelhas, fixadas com um esparadrapo cor da pele - não sei de quem - mais imperativo que Superbonder. “Aperte umas quatro vezes por dia. E só tire na próxima consulta”. Sim, senhora. Próxima consulta...

Saí do consultório me sentindo ridícula. Minhas orelhas latejavam e eu nem conseguia mais avaliar se alguém estava falando mal de mim ou não. Por via das dúvidas, mordi a gola da blusa com força. Nessa, quase esqueci o elevador e saí voando pela janela, como o Dumbo. Parecia que todo mundo estava sim, falando mal dos canteiros nas minhas orelhas.

Bem, dos males o menor... Tomara que sejam gérberas. São as minhas favoritas.

6 de outubro de 2007

as palavras certas

Drummond,
Se você estivesse aqui hoje
Esse nosso mundo cinzento e triste
Teria pelo menos
A cor e o conforto das palavras certas.

24 de setembro de 2007

segundo conto: ratos e ratos

Roc-roc-roc-roc-roc... A roedura não parava. Sons de patinhas correndo de um lado para o outro. De vez em quando, uns chiadinhos trocados, como se fossem indicações de tarefas a serem executadas. Muito engraçado! Roc-roc-roc-roc-roc... Pareciam até trabalhadores empenhados na concepção de um objetivo comum, operários incansáveis no fervor ininterrupto do dever. Não se mostravam, os tímidos, mas o barulhinho que faziam na labuta dedicada se ouvia na casa toda. Roc-roc-roc-roc-roc...

Por isso, há semanas que Ed não conseguia dormir. De manhã, via bostinhas, pêlos, pedacinhos mínimos de madeira roída por todo o lado – vestígios dos invisíveis. Devia engolir um monte desses dejetos nos momentos em que ressonava, babando exausto da insônia, de boca aberta. Mas ele se perturbava muito menos com a sujeira que com o saber dos bichos ali, como que conspirando, a noite inteira. Já estava ficando paranóico. Logo ele, que achava esse negócio de paranóia uma frescura.

Ednaldo era um cara que a gente pode chamar de repulsivo. Além de grosso, era porco, com uma vocação natural para a sujeira. Na construção onde trabalhava, era conhecido pela alcunha de “Fed”. Ninguém queria ficar muito perto dele – os colegas tinham medo de levar um coice ou pegar umas pulgas. Chegava em casa daquele jeito; banho, que é bom, nada. Pelo menos não tinha amigos, nem parentes próximos; morava só, num sobradinho desmontando, de um subúrbio pouco familiar da cidade. A casa inteira cheirava mal, fedor acre de descaso, podre, azedo, mofado, tudo junto.

Mas Ed vivia bem, dentro da sordidez comum a seu dia-a-dia. Ele não se importava com nada. Até que, uma noite, enquanto palitava as sobras do jantar nos dentes com a ponta de uma faca, ouviu um barulho esquisito. Vinha da embalagem de alumínio do prato feito de anteontem, que ainda estava no chão, perto da lixeira transbordando mais de duas semanas de porcariada.

Num súbito interesse, levantou o olhar. O recipiente se mexeu. Ednaldo aproximou-se, na espreita. A quentinha pressentiu o perigo e aquietou-se. De um pulo, Ed levantou a embalagem rapidamente e descobriu: era um rato enorme de gordo. O bicho saiu correndo apavorado – acho que ficou enojado da visão –, mas Ed não podia deixá-lo escapar. No impulso, atirou a faca e acertou em cheio o ventre do animal, que caiu estrebuchando num guincho sofrido e estridente.

Ed chegou mais perto para ver o resultado de sua obra. Puxou a faca. A criatura triste revirava-se na agonia, banhada em sangue quente. Com a maior satisfação, Ed viu saírem daquela barriga uns dez fetos. “A cretina da ratazana tava prenha! Ia encher a minha casa de gabiru, a desgraçada.” Alguns dos recém-nascidos pareciam estar vivos. Contorciam-se no meio de um muco repugnante, desesperados pela vida. Não adiantou. Um pisão os esmigalhou todinhos. Rindo-se, Ed olhou para a sola do pé. “Tão pensando que iam escapar, otários?”

Roc-roc-roc-roc-roc... Desse dia em diante, perdeu o sossego que tinha – uma vez que a companhia das moscas já não o incomodava há tempos. “Não agüento mais essa praga na minha cabeça!” Num vaivém incessante, os roedores continuavam seu labor. “O que será que tanto fazem, esses diabos?” Roc-roc-roc-roc-roc... Numa intrigante obstinação, os ratinhos tocavam a empreitada, sem recear nem um pouco as ameaças daquele sujeito asqueroso. Se duvidar, até se divertiam com isso. Agora, o forro do teto do sobrado era o palco principal do espetáculo. Curioso... Às vezes parecia até uma orquestra, tão ritmada e constante! Fosse Ed uma pessoa menos rude, teria notado a beleza da execução. Roc-roc-roc-roc-roc... “Acabem com essa zoeiraaa!”

Farto do ruído interminável, Ed resolveu contra-atacar. Arrumou umas dez ratoeiras e colocou-as em todos os cantos possíveis. Passados uns dias, viu que não adiantava, era como se nada houvesse: estranhamente, foram todas ignoradas. Aquele queijo fétido ficava ali, apodrecendo, de ração para as baratas engordarem. “Merda”, vociferou Ed, em seu costumeiro palavreado. “Ainda fui gastar dinheiro com rato!”

Arrumou, então, um gato vagabundo, com a incumbência de exterminar os invasores. Mas o felino não agüentou, nem os maus tratos nem as refeições – restos do Ed. Certamente, algumas lixeiras do bairro tinham coisa melhor. O bichano foi namorar em cima do muro e fugiu de vez, não sem antes colaborar com a percussão dos incansáveis roedores cantando uma melodia tortuosa durante a noitada. “Tá mancomunado com os ratos, imbecil? Vai! Passa fora, porqueira”, praguejou Ed, atirando um sapato pestilento no bicho.

Roc-roc-roc-roc-roc... “Me deixem em paz!” Começou a achar que estava ficando maluco. “É isso que vocês querem! Me enlouquecer!” Roc-roc-roc-roc-roc...

Já era dia claro quando Ed fechou os olhos.

Assim que o homem adormeceu, os ratos silenciaram, pela primeira vez. Logo começaram a sair de suas tocas e, em pouco tempo, um bando imenso correu para fora do casarão, em plena luz do sol. Dezenas deles: grandes, pequenos, rechonchudos, magrelos, saíram aos trambolhões, por cima uns dos outros, numa debandada em desvario. Pessoas na rua gritaram, mulheres fecharam portas e janelas. Parecia uma praga do Egito, que o mundo ia se acabar, disseram alguns. Mas os pequeninos queriam apenas se esconder de novo, desaparecer na escuridão fraternal de um bueiro, libertos, para sempre. Tinham terminado, enfim.

De repente, ouviu-se um grito lancinante de pavor. Um estrondo terrível sacudiu a rua toda. A poeira subiu alto. Chamaram os bombeiros, que demoraram muito a chegar. Os vizinhos nem lamentaram tanto. “Casa velha, era questão de tempo acontecer uma tragédia”, disse um. “O sujeito que morava ali não cuidava de nada, o lugar ficava um lixo, abandonado aos ratos” concluiu outro. “Que Deus o tenha. Ainda bem que alma não fede”, finalizaram, com mal disfarçados sorrisinhos. Os seres humanos sabem ser insensíveis à desgraça alheia.

Mas os ratos, não. Unidos, conhecem a força que têm juntos, para perpetuar a espécie. Precavidos, se preservam. Só gostam de passear fora dos esgotos à luz do luar, quando conseguem relaxar, se esquivar da perpétua perseguição. É assim que eles dissipam suas dores de excluídos da convivência pacífica com os outros animais, condenados que são pelo estigma da imundície que carregam. Isso, até o dia em que se cansarem de assumir a escória da Terra. Inteligentes como são, seriam capazes de tudo.

10 de setembro de 2007

primeiro conto: o jardim

(Este conto participa de um concurso. do Núcleo de Literatura da CD. O final já existia desde muito; estava escrito aqui no blog)

Pontinhas de galhos ressequidos denunciavam os bulbos que dormiam e, sem querer, saltavam da terra escura exposta ao chão cru. As forquilhas que desejaram ser brotos foram deixadas ao acaso do tempo, esquecidas nos canteiros desfeitos em abandono. Havia muitas outras coisas que se fazer ali, antes de se pensar em flores. O que um dia foi visto como jardim era agora um espelho perfeito para o recinto de tantos aflitos.

Casa de repouso era um epíteto ameno para o sanatório de paredes forjadas sobre pedras frias. Apesar de tudo, era um lugar limpo e arejado, como poucos naquele tempo. Lá se sofria e se orava. As freiras passavam de um lado para o outro em suas vestes monótonas, cumprimentavam-se, apressavam-se em cuidar de seus doentes. Chamavam os quartos de “celas”.

Era verão e eu gostava de caminhar quando havia luz e calor. Sonhava em sair daquele prédio insípido para ver de perto o verde dos ciprestes do outro lado dos muros, mas não me deixavam. Queria afastar-me dos tons de cinza que venciam o cubículo de ângulos tortos onde tentava dormir às noites. A minha vida inteira já havia sido assim. Triste, pálida, sem cor.

Tinha trinta e seis anos. Não conheci quem quisesse comigo compartilhar uma família. Perdi a chance de ser mãe. Os meus, todos se foram cedo e, sozinha, envelheci. Escaparam-me a razão e a vontade de ser. E minha existência incolor começou a pedir insistentemente o vermelho do sangue. Obedeci. Meus pulsos ainda ardiam quando acordei, muito longe de casa. Os vizinhos se apavoraram. Pensaram que eu estivesse louca.

Mas eu não temia os mortos – que me lembre, nunca temi. Ao contrário, identificava-me com eles, sentia um carinho cúmplice, quente e fraterno. Eu queria essa proximidade. Eram eles que me protegiam da escuridão noturna, quando os pesadelos visitavam os dementes. Eram os gritos que me aterrorizavam. Os loucos embarcavam em seus sonhos ruins com a intensidade da razão que nunca tiveram.

Um deles - acho que por esse motivo - não dormia. Varava a penumbra iluminado de velas equilibradas, que traçavam em seu rosto o aspecto da alma atormentada. Eu sempre o via sair. Sumia, arrastando suas correntes pelas trevas; só voltava quase ao amanhecer. E assim, amante dos fantasmas como eu, passei a amá-lo também.

Soube que tínhamos a mesma idade. A princípio, lembro-me bem, pareceu-me apenas mais um espectro, como todos os outros, vagando pelos corredores desbotados. Mas em pouco reparei melhor: o homem trazia no corpo a marca dos pigmentos criadores. Mãos, calças, casaco, chapéu. Às vezes até a barba exibia um respingo insólito. Ele era um pintor! Cerúleo, Cádmio, Cobalto, Ocre, Nápoles, Carmim. As tintas denunciavam o ofício e o faziam cheirar forte por isso; o fedor de Saturno a gotejar veneno em suas idéias.

Cheguei a ouvir cochichos de que era perigoso. Vez ou outra, jorravam de seu olhar ácido uns espasmos de violência incontida, explosões da galáxia distante que só ele conhecia. Eu sei. Os tentáculos de luz das estrelas queriam agarrá-lo e levá-lo para o outro mundo. Mas tinha medo de ir. Gritava e se contorcia em dores, no desespero da dúvida. Dentro de minhas próprias dúvidas, observava de longe o lamento das matizes vivas.

O que mais me intrigava, porém, é que o homem estranho se abandonava todos os dias diante de um ponto fixo do jardim morto e ficava lá, por incontáveis horas de sol e vento, sentado num banco duro de ferro, admirando o nada. Deleitava-se na expressão do solo nu, levantava as mãos e pintava uma tela invisível, como se estivesse enxergando contornos no vazio. E se mostrava assim, em êxtase, por tudo o que os outros não podiam ver. Ele, tão estranho quanto eu, pensei.

Até que, num dia de manhã luminosa, levantei-me mais cedo que todos. Foi o sol que me despertou e me tomou pela mão até o ar fresco lá fora. Respirei muito fundo e senti o prazer das batidas de meu coração, mostrando-me que estava viva. Foi quando, à distância, percebi algo diferente.

Em frente ao banco de ferro, as íris irrompiam cachos e botões. Não podia acreditar naquilo. Até ontem, o que existia era o terreno puro, sem cuidado, desfalecido. Agora, mil folhas polpudas espichavam seus bracinhos como que espreguiçando, acordadas para o dia e para a luz. Tons de violeta e azul, com miolos amarelos, flores cheias avançavam em pétalas para dentro de minhas pupilas incrédulas. Sentei-me e fiquei assim, levada pelo fascínio de um jardim recém-nascido, imaginando se, o tempo todo, ele não estivera ali, diante de mim.

- Você está vendo aquela flor branca?

Nunca tinha ouvido uma voz tão serena. Havia sim, uma única flor branca, solitária, entre todas aquelas cores. Senti-me feliz. A lembrança dos urros insensatos daquele homem dissiparam-se para sempre no entremeio das nuvens poucas do céu.

- Sim.

Uma revoada negra atravessou o pátio do hospício.

- Aquela flor branca sou eu.

Fiquei a admirar a solidão de um entre tantos iguais. Pela primeira vez, o artista colocou em mim aqueles olhos singularmente tristes:

- Você acha que o jardim de íris existe de verdade?

E eu respondi, com as íris brilhando:

- Não, Vincent. Acho que não.

4 de setembro de 2007

toccata e fuga

No estribilho...
O estribo levantou o martelinho,
Que bateu na bigorna,
(Feliz)

Tocada da música,
Toquei as notas mais altas
Com minhas mãos frias.
(Toco pelo calor que arrebata a pauta)

Fugi quando não mais podia
E na fuga,
Estilhacei os tímpanos.
(Fujo do compasso que abomina a letra)

E, sozinha no tempo, no vácuo e no amor,
Com a concha de meus ouvidos cegos da vida,
Antevi o próximo acorde.
(Mas nem os fantasmas se lembrariam de mim)

10 de agosto de 2007

pensamentos soltos (e presos)

Hoje já é dia 10. Mas nada está melhor por isso.

Acho que vou cortar o cabelo, que já vai lá pela linha da cintura agora. Pra que tanto cabelo?

Estou um pouco cansada.

A psicóloga um dia me disse que eu sou umas das únicas pacientes que toda a semana, invariavelmente, têm uma boa história pra contar. Gosto das minhas histórias e de tê-las tantas. Felizes ou tristes, me fazem saber a vida, ter a consciência de que respiro. Na verdade, acho que talvez todos as tenham muitas mas, no automático, perdem o olhar diferente de percebê-las.

Sinto falta de algo que não consigo precisar direito o quê. Sei que tenho um vazio, um buraco no estômago... Acho que vou fazer uma endoscopia.

Brotou um cacho de flores no vaso da orquídea que eu pensei que nunca mais fosse florir.

O Gato está enamorado do tapete de vaca que comprei para a sala. É uma mistura de pêlos, cheiros e espécies que me fazem espirrar vez ou outra e imaginar gatos malhados. Ainda bem que comprei aquele aspirador de pó vermelho. O pó não, o aspirador.

Acho que esqueci de digitar o código...

Quero voltar a dançar sozinha na frente do espelho e me sentir feliz por isso, como contou a minha amiga Maíra, outro dia.

As minhas dívidas estão parceladas até fevereiro de 2008 nos cartões de crédito. As pessoas não deviam ter cartões de crédito. O mundo feito de cartões de crédito não é justo. Eu não quero mais gostar de cartões de crédito. Eu vou quebrar os meus cartões de crédito em pedaços. E depois chorar.

A moça que trabalha lá em casa se chama Calminha. É, Calminha é mesmo o nome dela, de verdade. Eu vi a carteira de identidade. Engraçado isso, principalmente se considerarmos que ela tem pressão alta. E o fato da Calminha trabalhar na minha casa, há anos e anos, todas as semanas, infelizmente, ainda não me acalmou em nada a vida.

Vou olhar se tem novidades nos outros blogs agora.

Tchau.

9 de agosto de 2007

atropelos

Eu nunca tinha sido atropelada na minha vida. E aconteceu hoje, pela primeira vez, justo hoje. É uma sensação muito estranha, entre todas as outras sensações muito estranhas que tive nesse dia de "contagem regressiva", como disse uma amiga: 09-08-07.

Tinha ido tirar um novo passaporte, no posto da Polícia Federal. O sistema saiu do ar, me atrasei. Fui atravessar a pista em frente ao aeroporto, o telefone tocou. Atendi, me distraí. Um sujeito engatou a ré no carro, nem viu, me acertou. Um outro até gritou "cuidado!", o que fez com que aquele parasse.

Não cheguei a cair – depois que comecei a fazer Pilates e Tae Fight ficou mais difícil me derrubar. Talvez tivesse sido melhor se eu me deixasse ir ao chão. Mas na hora não senti nada, nada. Só me recompus, reclamei com o motorista negligente e fui embora assim, apressada demais, porque tinha outro compromisso: filmar um nascimento. E nascimentos não esperam não.

Chegando ao meu carro estacionado, sentei-me e finalmente senti a pena da resistência física: a perna latejava. E chorei - chorei um bocado - não só pela dor da pancada, mas por todos os atropelos e desatropelos da minha vida, resumidos ali, em um só.

morte e vida

A girafinha estava pendurada. A cabecinha pendia com a língua de fora, roxa, as patas dianteiras balançavam pra lá e pra cá, querendo sair. Ela era maravilhosa! Até então, eu acreditava mesmo que estava tudo bem. E eu queria ver o tombo da vida, lá do alto das patas, aquele bichinho grande cambaleando no capim seco, molhado de líquidos do ventre da mãe. Queria o nascimento, a luz, a respiração, o calor. Mas a minha fé torta não foi suficiente – nunca é. Um vermelho terrível começou a brotar da boca e me fez chorar de novo. Não podia aceitar, num lindo dia de sol! Girafas não podem perder dias transbordantes de sol, como aqueles das savanas de África, que elas nunca mais vão ver (mas que eu vi). Não vai não, girafinha, a gente nem brincou ainda! Ela não respondeu. Apenas piscou os cílios enormes e sorriu. Ela sabe o que vou fazer. Ela sabe!

7 de agosto de 2007

balas e chocolates
















Sei que pode parecer lugar-comum. Talvez todo mundo ache isso de si mesmo. Mas, de verdade, às vezes penso que há coisas que só acontecem comigo.

Cena:

Dirijo o carro da minha mãe – que não tem ar-condicionado nem vidros escurecidos – de janelas abertas por causa do calor de torrar jacaré. Paro no semáforo fechado e muito demorado.
Vem o cara que distribui panfletos.
Obrigada.
Vem a moça que vende pano de prato.
Não, obrigada.
Vem o rapaz da associação beneficente com canetas na mão.
Não, não mesmo, obrigada.
Vem o cara das balas e chocolates. Para diante de mim e dá um passo pra trás, fazendo uma reverência.
Oooiii!
Não, moço, obrigada.
Eu não vou te vender nada não!
Não?
Eu-não-vou-estragar-essa-beleza-com-bala-que-engorda-e-chocolate-que-dá-espinha!
(Começo a rir)
Eusepudesseganhavanaloteriaefaziaumaplásticapraficarpelomenosumpoucobonitopratentarconquistarumaprincesacomovocê!
(Ele fala muito rápido, nem respira. Acho que é porque sabe que o sinal vai abrir a qualquer momento)
Seeupudessetedariatudonomundobeijariaseuspésmaseusouumcarafeiopobreduroenuncavoupoderchegarpertodeumamulhertãomaravilhosa!
(Só consigo gargalhar)
Lindadivinaespetáculodanaturezacomosolhosmaisbonitosqueeujávimasnãosãosóosolhosnãoparecequeétudotudinhomesmoondejáseviuumacoisadessas?
(Ele estica a mão pra mim. Automaticamente, retribuo. Ele beija a minha mão. O motorista do carro do lado começa a rir)
Nuncamaisvoulavaressamãoqueencostounumadeusafeitovocêquecaiudocéunaminhafrentealegrandoaminhavidaedandoluzpromeudia!
(Sorrio)
Olha, o sinal abriu. Obrigada por tudo, viu?
Eu é que agradeço por você existir, princesa.

Acelero o carro e atravesso a avenida comprida pensando em balas e chocolates.



31 de julho de 2007

equilíbrio




















Um dificílimo número de equilíbrio e contorcionismo flagrado em um parque de Belém. Clique na imagem para ampliar!

16 de julho de 2007

histórias da lembrança imaginária do mar

Quando eu era pequena, bem pequena mesmo, como as pessoas nunca imaginaram que um dia eu tivesse sido, lembro-me de ter sonhado com o mar.

Não o mar que eu via de perto, da beira da praia de guarda-sóis, picolés e maiôs. Não aquelas ondas ferventes que transbordavam em caldos meus olhinhos de bebê. Nem o que me castigava as bochechas de vermelho pela quentura da areia crepitando.

O mar do meu sonho estava mais para oceano, inteiro no somatório de suas gotas, sequioso de amor pelos peixinhos, bússola de navegantes divagantes, grandiloqüente, me sussurrava nos ouvidos segredos de um belo dia de sol que, não sei porque, naqueles tempos idos, esqueci de viver.

Sinto falta dele. Daquele sal. Do mar do meu sonho, do cheiro de saudade que ele me remete lá de longe, quando tenho essas lembranças vagas. Fuuuuuuuuu... O vento me traz conchinhas rosadas e os tatuís crescem nas idéias. Água verde-azul que me faz mais feliz do que já fui.

16 de junho de 2007

biscoito chinês

Não tem nem três meses, eu me considerava uma pessoa de sorte, do fundo do meu coração. Mas, de repente, não sei porque, tudo desandou: perdi o namorado, briguei no trabalho, a insônia voltou, meus aparelhos eletrônicos pifaram todos de uma só vez sem que nem um raio tivesse caído nas redondezas.

E, assim, tive certeza. A maré começou.

Sábado, 10h40. Eu precisava ter saído, feito mil coisas na rua. Mas tinha acabado de acordar, com aquela cara de bife que fritou a noite inteira na cama sem conseguir dormir. Chamei o gato trinta vezes pra repassar um carinho e ele não veio. Ué... O gato obedecia ordens até três meses atrás...

Eu não percebi na hora, mas era um sinal.

Tomei banho quente, pelando. Com calor, botei um vestido fininho. Fui arrumar a cama, organizar uns papéis, depois checar uns e-mails. O estômago roncou. 11h50 sem comer nada.

Pensei em ir ao self-service da esquina, apesar de ainda insistirem em repetir essa chatice de que a cidade não tem esquinas. Foi quando a preguiça bateu de novo, forte. Vamos parar com esse negócio de ficar andando, respirando ar puro, pegando sol. Vou é chamar o China In Box.


Quarenta minutos depois, toca o interfone. Corro pra pegar o dinheiro e vejo o gato na sala de tevê, se digladiando com o ratinho de brinquedo. Abro a porta e o entregador mascarado, com capacete de motociclista na cabeça, me estica a sacolinha e o troco. Obrigada.

Foi o tempo de olhar pra baixo e ver que o gato escapulia feito um raio (ah! O raio!) por baixo das minhas pernas, miando em direção às escadas do andar de baixo. Fração de segundos: dou três passos rápidos e longos, alcanço o gato e escuto o “cablam”! De costas, penso ainda: “cablam”???

Me viro e vejo a porta fechada, irremediavelmente fechada. Por que fui abrir a janela? Eu não gostava mesmo de ar puro!...


O motoqueiro mascarado entra correndo no elevador fazendo cara de “não tenho nada a ver com isso”, claro, sem deixar de rir disfarçadamente.

A minha ansiedade deu um duplo tuíste mortal carpado pra trás.

Estava ali, no meio do corredor escuro, de vestidinho, chinelos, descabelada, com o almoço, o troco e o gato na mão, trancada do lado de fora de casa. Pensei no “Homem Nu”. Aliás, pensei na minha vida inteira como num cineminha. Queria morrer.

Fiquei estática, estatelada e apalermada por alguns segundos. Segundos não, minutos. Minutos? Pareceram horas. Olhei para a porta. Pateticamente, forcei a maçaneta travada. O gato começou a berrar. Está tudo sob controle. Vamos descer e pedir ajuda para o porteiro.

E o porteiro se espantou um bocado, ao me ver chegar daquele jeito, feito uma louca de rua, logo ele que só me vê quando saio e quando volto, toda arrumadinha e bem penteada. Expliquei a situação e ele se compadeceu, claro, sem deixar de rir disfarçadamente. “Vou ligar para o chaveiro da quadra”.

Na minha quadra tem um chaveiro 24 horas. Fica a menos de dois minutos da minha casa. E quem disse que o telefone atendia? Tenta, tenta, tenta, quinze minutos ocupado. “Vou tentar esse outro que tem aqui”. Então tenta, pelamordedeus!

Atendeu. Era do outro lado da cidade. Valor do serviço: 35 reais. Me passa esse telefone. Comecei a discutir o preço quando o gato, já de saco cheio de ficar no colo, se desesperou. Achou que ia cair e começou a escalar as minhas costas, cravando as unhas com vontade. Me ajuda, me ajuda! “Hein?” Não, não, aaaaaaaaaaiiiiiii!!! Não é com o senhor, não!

O porteiro segurou o gato descontrolado e em vez de tirá-lo de cima de mim, apenas sustentou o bicho, que, assim, ficou correndo as garras na minha pele.

Moço, vem agoooooora!

Gato não é que nem cachorro, que você solta na rua, fica olhando e dá um assobio que ele volta. Gato, ainda mais acostumado a apartamento, se esgueira numa velocidade, sobe numa árvore, se esconde num buraco e aí, meu amigo... Um abraço. Nunca mais.

Segurei o gato com segurança, comme il faut. Agradeci ao porteiro e amarguei a dor das unhadas na carne. Percebi que tinha sangue grudando no vestido. Parecia que tinha sido torturada – parecia? Comecei a chorar baixinho. Andei de um lado para o outro pra ver se o gato se acalmava – e eu. Os vizinhos passavam olhando.

Finalmente, resolvi largar a sacolinha do almoço num degrau de mármore da escada da portaria. Sentei em outro, pus o gato no colo. Senti o mármore frio congelando a minha bunda com toda a crueldade. Apesar de ser atéia, rezei fervorosamente para não aparecer nenhum cachorro, dos cem que existem no prédio. Cadê esse chaveiro?

Meia hora depois, já com a bunda anestesiada, chega o cidadão. Conto a história toda de novo e ele também se compadece, claro, sem deixar de rir disfarçadamente. Subimos. Mais meia hora pra arrombar a maldita porta. O gato miando e o almoço esfriando. “Não foi fácil não, dona, esse serviço é muito chato”. Tudo bem, você salvou a minha vida. Acho que estou valendo pelo menos uns trinta e cinco reais – talvez menos. Muito obrigada.

Fechei a porta, o gato saiu correndo para debaixo da mesa. Comi meu almocinho gelado que, no final das contas, contando o serviço do chaveiro, tinha saído por 60 reais. Sem fome, deixei a caixinha mini pela metade. Em compensação, lembrei que tinha uma caixa de Bis no armário. E essa eu comi todinha.

Fui jogar fora os restos, cheia da maré de azar, achei o biscoito chinês da sorte. A mensagem dentro dele – eu precisava ler a mensagem, precisava! - dizia assim: “O progresso calmo e constante, livre de precipitação, conduz ao objetivo.”

...

Vai à puta que pariiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiu!!!!

4 de junho de 2007

patchuli

Oi, meu amor, venia cá!
Eu?
Sim, venia, que aqui eu resolvo todos os seus problemas!
Todos?
Tenio remédio pra tudo aqui. Olhe só.
O quê?

Você já tem um amor?
Amor?
Uma moça bonita dessa não tem amor?
Ahn... Bem... Pra senhora ver...
Mas gosta de alguém, não é, meu amor?
Seu amor?
Todo mundo tem um amor, meu amor.
É, tem.
Essa essência aqui é ótima.
Qual?
“Vem a meus pés”.
Que planta é essa?
“Vem a meus pés”? Ahhh, é uma planta que faz a pessoa amada vir a seus pés.
A meus pés?
Sim!
Só isso?
E quer mais, meu amor?
Bem... Acho que sim.
Então essa aqui também é tiro e queda...
Ahn?
“Perfume da perseguida”.
Ai, meu Deus!
E o cheiro é bom, meu amor!
E o que é isso vermelho aí dentro do vidro?
Esses pedacinios aqui?
É.
Shhh... É pedacinio da perseguida, meu amor!
Ui!... Não, não gosto de nada feito de bicho, não.
Então olha, tem também o “Agarradinio”...
Agarradinho... Esse parece bom...
É ótimo!
Mas acho que ainda não vai resolver o meu problema...
Ê, problema pai d’égua esse, meu amor!
Pois é...
Você precisa é de um patuá dos mais fortes!
Então?
O “Olho da Bôta”.
Bota?
Bôta.
Bôta???
E não é, meu amor?...
Ai, dona, acho que não tem jeito não.
Tudo tem jeito, meu amor...
Talvez não...
E então, decidiu o que vai levar?
Me dá só um vidrinho de patchuli.

20 de maio de 2007

rapunzel

Meus cabelos compridos se atiram pela janela
Em ondas avermelhadas
Mas ainda não tocam o chão.
Esvoaçam ao vento, tênues, apesar do peso que levam...
Os pássaros roubam os fios que se soltam
E tecem ninhos sanguíneos.
Minhas tranças enormes ainda não alcançam meu desejo
De colocar as mãos na terra
Me libertar da torre escura
E sentir que pode ser real.

10 de maio de 2007

o grito

Meu antebraço direito está gritando. Até pouco tempo atrás, não sabia que ele falava também. Meu estômago conversa bastante comigo em horas estratégicas do dia; minhas costas fazem “crec” quando querem carinho; meus calos latejam pedindo escalda-pés; meu coração às vezes acelera tanto que os outros podem ouvi-lo do lado de fora. Mas o antebraço, carinhoso e incansável, que eu sempre acreditei mudo, esse se pronunciou pela primeira vez há uns três meses apenas.

Me espantei com os protestos. É quando se menos espera que os descontentes aparecem. O manifestante exigia melhores condições de trabalho: mais apoios, almofadinhas, antiinflamatórios; menos pulseiras, braceletes; carga horária reduzida; férias remuneradas com benefícios extras: acupuntura e fisioterapia. Afinal, estava já prestes a se aposentar por tendinite crônica e generalizada, o pobre. Era isso ou greve.

E assim, me vi obrigada a começar uma manobra institucional de canhota, pouco canhestra até, quase ambidestra, repassando mais da metade do serviço acumulado na repartição para o lado de lá – o gauche. Vai, antebraço, ser gauche na vida.

Eternamente desejoso de poder, o antebraço esquerdo domina a situação agora, ri, se diverte e se empanturra. E cala, desdenhoso, enquanto o colega continua a urrar. Esperneia, chora e grita, grita, grita, o antebraço direito. Da dor tortuosa da inutilidade.

Vai entender. Bem no fundo, são todos tortos. Ou direitos.

11 de abril de 2007

canção para cair em mim













O cavalinho rodou
O carrossel
A roda gigante
A roda da fortuna
As bolas no globo rodaram
Os discos
Os filmes
Os parafusos
A engrenagem rodava
O relógio
O girassol
O moinho
O redemoinho
A bailarina
As luas rodariam
As órbitas
Os olhos
O assoalho
Gira circula volteia
Tudo rodando
E eu tonta da vida
Tonta
Tanto, tanto


31 de março de 2007

sorte

Eu tenho sorte. Muita. Sempre chego a tempo de pegar o último pão quentinho da fornada. Encontro vaga no estacionamento lotado. Tenho um gato que obedece ordens! Covinhas nas bochechas. Vejo tudo quando fecho os olhos. Ganho rifas e sorteios. Acho um grande amor. Tropeço sem cair, caio sem me machucar, me machuco, mas sara logo. Gargalho fácil às lágrimas. Sei desenhar passarinhos e caracóis em dez segundos. Gosto de arroz com feijão. Danço sozinha na frente do espelho como se estivesse num palco. Desperto a simpatia de quem nunca tinha visto antes. Ouço música aqui dentro, sem precisar de I Pod. Escrevo as maiores bobagens sem medo. Faço pedidos para velinhas de aniversário e para estrelas cadentes até hoje. Sinto cócegas. Consigo decorar poesias enormes! Aprendo todo dia a perceber as lindas histórias que vivi. E vou viver. Com toda a sorte de alegrias.

3 de fevereiro de 2007

o baile

Vestido verde-água-claro
Longo, suave
Fluorescente
Flui flui flui

Quase dois metros de salto alto
Céus! Tão perto dos anjos
Fluido
Flui flui flui

Cabelos vermelhos
Esvoaçam vivos
Fluxos
Flui flui flui

Com as borbulhas
Sorrisos, danças
Flutuo
Flui flui flui

Flautinhas nas idéias
Flechas no coração
Flertes florescem
Espero, que vêm

E o vento canta
Ainda canta lá fora.
Flui flui flui...

19 de janeiro de 2007

AMAR SE APRENDE AMANDO.

AMAR CY APRENDE AMANDO?

A MARCYA PRENDE AMANDO...

AMAR CY APRENDE A MANDO!

AMARCYAPRENDEAMANDO

HÁ MAR. SE HÁ, PRENDE, A MANDO.

16 de janeiro de 2007

SITCOM

Título: Probóscida

Sinopse: Mulher de 36 anos, que vive só com um gato fêmea e trabalha num segundo subsolo sem janelas, compartilha suas lamúrias com o mundo escrevendo um blog.

Personagens fixos: a Marcya, o Gato, o Espelho, a Outra, o Monstro da Lagoa Negra, a Mulher Invisível, o Laptop, o Telefone, a Tevê, O Sapo.

Personagens extras: a Maíra, a Fabiana, a Ana Laura, o Tião e o Anônimo.

Episódio 1: Um Dia Surpreendente

Escaleta:
01- Marcya acorda, às seis da manhã, com uma lambida de lixa na cara.
02- Marcya se senta, de chinelos e pijamas, diante da Tevê desligada.
03- Marcya coloca o Laptop no colo e o liga.
04- O Gato digita algumas palavras em sua língua.
05- Enquanto o Laptop tenta ressuscitar, Marcya, apesar de atéia, reza para chover e não precisar ir caminhar no parque.
06- Marcya checa o Telefone mudo a cada cinco minutos.
07- Marcya ensaia a dança da chuva.
08- O Monstro da Lagoa Negra manda um abraço apertado pelo Orkut.
09- Ironicamente, a Mulher Invisível aparece.
10- Marcya consulta a previsão do tempo para hoje.
11- A Outra prepara salmão com alcaparras para um.
12- O afghan hound da Outra troca uma idéia veemente com o Gato.
13- Não vai chover hoje, diz o meteorologista na internet.
14- Marcya coloca roupa de fazer exercícios e vai conversar com seu personal stylist, o Espelho.
15- O Espelho dá uma gargalhada histérica, Marcya engole o Sapo e vai para o parque caminhar.
16- Chove.

FIM

Comentário de Maíra: Choveu? Pois a vida é feita de intempéries mesmo. Pegue um guarda-chuva, dance muuuuito nessa água toda e transforme essa enchente num musical badalado! Beijossssss!

Comentário de Fabiana: Concordo. Esse seu Espelho é um histérico! E diz pro Monstro da Lagoa Negra que eu também mando um abraço... Adoro verde.

Comentário de Ana Laura: Marcynha, você não precisa mesmo de exercícios. Precisa de terapia!

Comentário de Tião: ó, marcya, desengole esse Sapo de uma vez que um engasgo desses a gente não cura só com tapinha nas costas não, viu?

Comentário de Anônimo: Teria o telefone dessa Outra aí, hein?

10 de janeiro de 2007

a caminhada

Eu acordo às sete da matina com uma lambida de lixa no cotovelo. Pisco, me reviro, olho o relógio de um celular, depois do outro (eles são dois), confirmo pelos solavancos do sol vindos das brechas da persiana, o despertador toca na seqüência, o corpo dói, o sono pesa, o edredom verde faz um apelo emocionado, nem acredito... Soneca! Não, soneca não. Se tiver soneca, já era. Adeus. Só amanhã. Levanta agora!

Levanto. Me arrasto até o banheiro. Que cara horrível. Tudo bem, é com essa mesmo que eu vou. Lavo o rosto com sabonete em gel para controlar oleosidade. Não adianta muito. Enxugo, quase piso no gato, que, por isso, resmunga. Resmungando também, rastejo até a cozinha, quase de quatro também. Pego uma caneca preta enorme, coloco duas colheres de sopa daquele troço caríssimo que comprei, cheio de vitaminas, proteínas, sais minerais e complementos alimentares importantes como o “exclusivo Prebio”. Completo o caldo com leite desnatado. Chego a comer uma banana! A culpa é uma boa amiga da vida saudável instantânea.

Armário. Gato espia lá de dentro. Fooora! Bermudinhas ciclista, tops pretos e brancos, pares de meias curtinhas, blusas coloridas de alcinha, muitos, muitos pêlos. Tá, um de cada. Sem os pêlos. Misturo tudo no liquidificador e mando deep inside. Calço os tênis e arremato o rabo-de-cavalo. Acho que ainda falta alguma coisa. Boné, óculos escuros, I-pod. Sei o que é. Meu espelho ainda não me viu assim.

Ai. O espelho me diz que estou ridícula vestida desse jeito. Aonde pensa que vai, criatura? Já é carnaval? A quem é que você quer enganar? Amanhã tudo termina. Amanhã você não continua. Isso não vai ter futuro. Nem me venha choramingar quando tiver desistido. E não diga que eu não avisei.

Cala a boca, espelho cretino. Vou começar a caminhada sim. Lá vou eu. Mais uma vez.

5 de janeiro de 2007

a artista

Estava na fila do supermercado meio vazio, folheando uma revista boba. Duas ou três tiazinhas conversavam, no caixa ao lado. De repente, ouço uma delas dizer:

- Olha essa moça aí. Parece uma artista.

Na mesma hora levantei a cabeça e olhei pra trás. Queria ver a artista. E o que exatamente isso poderia significar. Ninguém. Olhei para a direita. Um sujeito barrigudo de chinelos, com duas crianças. À esquerda, nada.

Ahn. Não tinha mais. Elas falavam de mim. A artista era eu.

Assim sem graça, voltei rapidamente à revista. Disfarcei: conferi o relógio, contei os pacotes no carrinho, guardei os óculos escuros, resmunguei baixinho que “essa fila não anda!” Foi daí que, bem devagar, tentando não ser percebida, olhei pra mim mesma, pra avaliar, dos pés aos ombros, que era até onde dava pra enxergar, afinal. Tênis pretos, saia jeans toda desfiada, camiseta preta desbotada.

Talvez eu já tivesse sido uma artista mais glamurosa. Ainda não sei qual era a idéia das tias. Mas pouco importa. Me vi artista de cinema, estrela dos anos 40, a piscar na tela, admirada por pipocas e olhos. A música orquestrada introduziu a seqüência.

A saia branca subiu às alturas na passagem pela calçada, deleite de brincadeira safada e quentinha. Para esfriar, mergulhei de maiô colorido e touca de flores, fazendo coreografia de caleidoscópio na piscina. Pulei de lá para dançar cheek to cheek com Fred Astaire, acompanhado de coro de objetos inanimados: cabides, cadeiras, vassouras, sei lá. Beijei languidamente Alain Delon, que desmanchou o francês no meu ouvido... Le prochain... O próximo! Acorda, moça. A fila anda...

Meu olhar entardeceu, nostalgiquinho... Quem sabe a artista que eu queria ser não aflora mesmo de vez em vez, quando estou mais distraída? Essa artista que me fará única, especial e desejada, a cada projeção da fita? É preciso procurar o glamour... Hoje quase aconteceu. E amanhã... Amanhã é um outro dia.