28 de agosto de 2006

estribilho

No meio do escuro nada
Entre os meus cabelos de cipó
Preso, um passarinho.

De onde saiu não me lembro
Por qual janela entrou
O inócuo

Nem se debatia
A não ser em si mesmo
E me fazia rir

Cantou, incauto, um fato ou dois
Tossiu, pediu grãos
Deu voltinhas pelo ar

E ainda que eu não o encontre
Nos horizontes que irradiam desde já
Sei que me entreabriu uma pestana
A que estava a mais cochilar

E agora que aquele voa
Antevejo mil duzentos e cinqüenta e sete
Passarinhos estribilhando

E eu ali
A finalmente
Ouvir a música

21 de agosto de 2006

a girafa e a bailarina











A bailarina que existe em mim não se conforma com a girafa que eu sou. Tantas vezes quantas tente bailar, graciosa, pelos palcos, serão as vezes em que vai cambalear, grotesca, perdida, até encontrar o chão.

Esse desequilíbrio não tem fim.

Vento, nuvem, asa de borboleta, suspiro, algodão-doce, bolha de sabão, passarinho, folha de papel em branco, musiquinhas de ninar, pétalas de margarida, piscadelas de flerte, joaninhas e a pequena bailarina rodopiam sob a cúpula de cristal. O animal acuado inveja. Camelopardalis também está aqui, bailarina. Presa pra sempre numa jaula invisível.

O gigante caminhante vai, na lentidão de um filme triste, em direção a seu destino. As batidas do coração cortejam os tambores dos ancestrais longínquos, que cantam com alegria. Canções que exaltam os coloridos mágicos das terras distantes e para sempre amadas de África, que um dia abandonamos sem saber.

A bailarina chora de saudades da girafa.
Eu não concordo com a vida.
E o meu ser não vai mudar.

15 de agosto de 2006

ruínas

Comecei a erguer uma casa.

De início, não tinha eu as maiores ambições. Queria apenas um lugar onde pudesse me saber feliz. Já morei em alguns diferentes espaços. Mas nenhum que eu chamasse verdadeiramente de lar. E sem nada mais a perder, num estranho segundo, comecei a construção.

Fazia tijolo, concreto armado, pau pra toda obra, madeira de lei, azulejo relevante, era vidro, pedra no sapato, dava na telha, parafusos a menos, ficava só o prego, martelava no dedo. O desalinhamento não veio junto, como eu temia. Subiu tudo numa rapidez de muito investimento.

E assim, sem querer, o que nasceu lugar para morar... Tinha virado um castelo. Com tantos cômodos aconchegantes, tantos vãos e voltam, escadas de caracol, salas imensas, claras varandas, quartos crescentes, jardins suspensos, fechaduras cheias de olhos, armários de C. S. Lewis, cantinhos a perder a conta, portas para outras dimensões, que às vezes desaparecia para me achar lá dentro. Encontrava cem janelas abertas para as nuvens e o sol. Veneza ou Kuala Lumpur. Para a máquina do tempo. Para as savanas africanas ou para uma lagoa dos Lençóis. Na minha própria casa.

Até que, numa noite sem chuva, de volta, cansada depois de um dia de trabalho... Ela não estava mais ali. A casa que eu levantei com carinho e suor foi mais uma vez ao chão, como todas as outras, com tudo o que eu amava lá dentro. Ruiu, e até hoje não sei bem se veio inteira abaixo ou se a demoliram sem pressa, às colherinhas de café sem açúcar.

Sei eu que as ruínas vão ficar, expostas e misteriosas, lindas e gratuitas, abertas à visitação pública. Ou até que reapareça, por fortuito que seja, o desejo de um dia as reconstruir.

13 de agosto de 2006

a múmia







A múmia sou eu. Imóvel, enfaixada, inerte, parada, dura, seca, imutável, inflexível. Que saqueadores vão achar a minha tumba, para despertar-me depois de séculos de sono irresoluto? Não tem maldição. Só agradecimentos. A múmia quer acordar.

Os rituais dos antigos e os filmes de Hollywood já prenunciavam essa volta, sequiosa pela luz de Amon-Ra.

E eu, a múmia menina, cheirando a perfumes belíssimos e ornada de jóias de ouro e flores esculpidas, cercada de um séquito de estátuas de pedra, sonho com lá fora.

Anubis faz caretinhas de lamúrias, enquanto Nefertiti diz: “Calma, minha filha... Temos a eternidade!...”

Cansei da eternidade, rainha. Do fundo da minha cripta escura, espio com inveja os felizes efêmeros banhados pelo dia.

Espero encontrá-los no Vale dos Reis.

8 de agosto de 2006

frutas ácidas

O ácido da minha boca não vai sair. Corrói, mas, estranhamente, transige o doce, que vive por ele, lado a lado, sem, no entanto, poder se misturar. E o doce que por ele é, sofre de amores pelo ácido. Que química é essa que falta, que ligação covalente, que doses de prótons e elétrons, que não chega para uni-los nunca?

Pensei primeiro que esse amor fosse fruto do abacaxi muito maduro, que cortei e me cortou. Quase verteu sangue essa dor! Depois tive a dúvida do limão, a suspeita da laranja, um tomate que levei na cara! O amargo se meteu para reivindicar seu lugar no doce coração. Mas não há fruta que resolva esse impasse, dos gostos que se complementam sem se misturar. Não tem salada nem explicação.

E quisera o doce ser tão sulfúrico, queimar mesmo, para deixar marcas visíveis e indeléveis. E quisera o ácido viver mais açucarado, se entregar sem medo ao néctar, melar ao toque gostoso de todo dia...

Mas histórias de amor são assim: tanto mais bonitas quanto mais impossíveis, tanto mais prováveis quanto mais imiscíveis, que se dessa forma não fossem, não teriam elas sabor.

5 de agosto de 2006

mergulho em apnéia













Eu mergulhei de cabeça, cheia de caraminholas maduras. Sempre soube nadar, mas naquele momento exato... Esqueci. Deu um branco total de flutuações, cachorrinho, bóia, bote inflável, borboleta, natação em geral. E assim fui afundando.

Olhei para os lados ao descer. Era só aquele silêncio de tímpanos estourados e cabelos mesclados com o movimento. Vi umas bolhinhas poucas, tão indolentes que, pensei eu, “vão afundar também”.

De repente, o imprevisto: Jacques Mayol aparece na minha frente! E, é claro, me ultrapassa rápido, sumindo no meio da imensidão azul. Na seqüência passa um golfinho bobo, fazendo bico de desdém.

Uma pequena sereia tricota, velhinha, ainda linda, porém muda como um peixe. Queria ter virado borbulhas, se misturando às ondas do mar, mas os estúdios Disney não deixaram. Seu príncipe nasceu, cresceu e morreu. E ela continua ali, pelos milhares de anos, se ressentindo da falta que Andersen faz.

Atlântida não era uma companhia cinematográfica fadada a afundar! Vi seus peixes com cara de gente, sua cidade avançada, Bob Esponja e Ulysses Guimarães jogando canastra com uma ostra recôndita. Titanic submergiu para ser a bela casa de tantos peixinhos...

Foi quando cocei as orelhas molhadas que me lembrei: “cadê minhas brânquias?” Nem baleia era – ou estava -, apesar de colega mamífera, mesmo com uns pouquíssimos quilinhos fora de lugar. Muito menos anfíbia, pingüim, foca ou cavalo-marinho.

Oh, mares! Jacques Mayol está voltando... Tenho que me agarrar ao desejo de Jacques Mayol de respirar.

E sendo assim, no poço sem fundo da minha quimera, permaneci. E ainda hoje vivo na esperança de encontrar o golfinho desdenhoso, que um dia, creio, terá que emergir para tomar ar.