27 de dezembro de 2007

o que faltou

Faltou espaço.
Faltou tempo.
Faltou ar.
Faltou amar.

Faltou respirar brisa do dia.
Faltou caminhar de olhos fechados.
Faltou confiança e eu sabia
Que faltava olhar para os lados
E enxergar.

Faltou dizer tudo pra quem eu amava,
Mas minhas palavras estavam em falta,
E na hora faltou coragem.
Por outro lado, faltou calar na hora certa,
Que pra isso também é preciso coragem
(Acho que foi ela que mais me faltou).

Faltaram novos filmes, novas músicas.
Faltou pouco para um beijo - ou dois.
Faltaram mãos dadas.
Faltou uma despedida.
Faltou dizer sim
Dizer não.
Faltaram verdades.
Faltou superar
(Pra isso, faltou vontade).

Vi que faltou paciência – essa sempre falta.
Faltaram respostas, porquês, motivos.
Eu sei que faltou sair de casa, ver pessoas, ir pra rua.
Tentar.
Faltou socializar.
Faltaram oportunidades.
Faltou dinheiro.
Faltou um rumo,
Pela falta de alternativas.

Só o que sobrou
Foi a falta grande que eu sinto
De tudo o que faltou
Sobrar no ano que vem vindo
Pra recomeçar a vida
Sem falta
Outra vez.

25 de dezembro de 2007

da fina arte de laminar amêndoas


















Compre as amêndoas – caríssimas - mas não muitas, para sobrar um dinheirinho para o peru. O suficiente para encher meia xícara de chá, o que, provavelmente, contará umas cinqüenta amêndoas.

São diminutas, muito duras, enrugadinhas, protegidas por peles morenas que, infelizmente, é necessário tirar, ainda que pareça impossível. Por isso, não se deixe intimidar. Chegando à cozinha, prepare-se para cuidar delas. Isto demanda tempo.

Numa panela, coloque água e leve ao fogo alto. Quando ferver, desligue. Acrescente as amêndoas e deixe aferventar por três minutos. Cronômetro.

Prepare uma outra tigela, esta com água e gelo. Passado o tempo, desfaça-se da água fervida e transfira as amêndoas quentes para boiarem junto com os cubinhos gelados.

É o choque térmico que faz com que a pele das meninas se solte. Uma pena. Ou melhor, um peeling. Deixe esfriar por dois minutos. Cronômetro. Assim, ficam geladas.

Em seguida, retire as peles. Bronzeadas que eram, tornam-se brancas, dessas mais frescas, que passam bloqueador solar até à noite. Contudo, é preciso dizer: as rugas continuam ali.

As capinhas ficam soltas, como um balãozinho murcho, mas não saem sozinhas. Com a ponta de uma faca pequena deve-se furar e puxá-las com cuidado, uma a uma, delicadamente, das cento e cinqüenta amêndoas. Neste ínterim, preaqueça o forno a 160ºC (temperatura baixa), por dez minutos. Termômetro. Cronômetro.

Depois de descascadas, ou peladas, ou despeladas, ou escalpeladas, ou escaldadas, ou produzidas por tratamento estético, organize as mil e quinhentas amêndoas numa assadeira.

Coloque-as dentro do forno - desligado - por dez minutos. Cronômetro. Ah, chacoalhe a assadeira de vez em quando para que elas se animem um pouco e assem por igual.

Tempo findo, diga às garotas que a sessão de bronzeamento artificial acabou – afinal, fizeram descamação pra quê? Organize todas elas em cima de uma tábua e peça para ficarem quietas – mulheres quando se juntam...

Agora sim, tem início o verdadeiro trabalho artístico. Com um bisturi, digo, uma faquinha, muito afiada, comece a cortar as cem mil e quinhentas amêndoas em lâminas bem finas.

A princípio, você vai laminar os dedos com mais facilidade que as amêndoas. É que eles são mais macios. Mas não se preocupe. Depois de partir um milhão e quinhentas mil delas, é possível cortar uma única, com cerca de 1cmx0,5cm em pelo menos oito pedaços. Cuidado para não ser soterrado.

Depois de terminado, aprecie no arroz metido a besta, na salada sofisticada, na decoração da sobremesa.

E lembre-se alegremente: ainda tem que preparar o peru, que é um só!

17 de dezembro de 2007

o miado

Comecei a ouvir um miado estridente de filhote. Num instante, mais de mil havia ao meu redor, a gritar de desespero, numa esganação de fome. Eram muitos e eu uma só. Estranhamente, não se exasperavam nem brigavam uns com os outros. Não arranhavam nem corriam. Apenas andavam em círculos e miavam em súplica.

Virei-me na cama com a lambida de lixa de meu gato de verdade, que tinha vindo se aninhar mais perto, enquanto eu não recuperava a consciência do despertar. Os berros vinham de fora.

Fiquei um tempo acordada olhando para o teto escuro, imaginando como eu me sentiria se aquela criatura morresse ali sozinha, sem que ninguém tivesse feito nada por ela. Maldita consciência, a uma hora dessas! Olhei o relógio: quatro da manhã. O meu sentimentalismo fracote achou que era cedo demais para um surto.

Mas o bicho continuou lá, naquela sinfonia dos aflitos, apelando para a minha compaixão e para o desafino da dor nos meus ouvidos. A coragem me empurrou num pulo. Enfiei uma roupa, coloquei leite num potinho e desci, de caixa de sapatos à mão. É, eu estava disposta a tudo.

O porteiro me disse que o bichano ficava correndo de carro em carro no estacionamento. O último que chegasse, mais quentinho, era o escolhido, até que o frio viesse de novo. Perguntei por uma lanterna. E lá fui eu, me postar de quatro no chão para olhar debaixo de todos os estacionados até encontrar o gatinho.

O descobri preso no motor de um jipe, arisco, em pânico de se perceber notado. Desliguei a luz e fiquei esperando, quieta. Quando desceu, cinzento, magrinho, estiquei o braço para pegá-lo. Mas ele foi mais rápido – sempre são! Fugiu para outro carro e eu voltei a minha abnegada tarefa, com toda a paciência que nunca tive.

Foi assim até umas cinco e meia mais ou menos, quando o dia já ia clareando. Exausta, desisti da luta e me rendi ao instinto felino, mais ágil e mais esperto que eu. Sei também que o sofrimento é um aprendizado. O bichinho deve ter levado uns tantos chutes na vida breve que teve até ali. Generalizou os seres humanos e para ele, todos eram apenas cruéis.

Subi no elevador pensando em nossa derrota, afinal, perdemos ambos. O gato se foi. Mais um dos tantos gatos que se foram da minha vida. Só espero que, pelo menos este, pare logo de me acordar à noite, a me atormentar com sua lembrança esgoelada.

13 de dezembro de 2007

carta para o papai noel

Caro Papai Noel,

Eu nunca acreditei em você. Desculpe falar assim tão secamente, mas é a verdade. Eu era uma criancinha de quatro anos esclarecida, materialista e pragmática. Isso já prenunciava minhas convicções ateístas da idade adulta. Não se magoe. É apenas uma constatação. E preciso confessar ainda que só resolvi escrever esta carta num momento soporífero, de insônia terminal e pestanas entreabertas. Gosto do Natal só porque é feriado – os aeroportos ficam lotados. Sim, claro, porque come-se bem - uma comilança desenfreada. E tem a parte dos presentes - um desespero nas lojas.

Não se preocupe; eu não vou fazer nenhum pedido. A minha loucura não chega a tanto. E, afinal, já disse, nunca acreditei mesmo em você - mas que mulher deveria acreditar nos homens, não é? Além de tudo, meus desejos são pura retórica, enfeitados com bolas coloridas de pessimismo e estrelinha de descrença no topo. Vou vagando pelo deserto da existência, simplesmente, sem enxergar luzes que me guiem os sentidos até uma salvação.

Pedidos são para os que têm fé, essa misteriosa. Não tenho a menor pretensão de atendimento metafísico a curto prazo, muito menos até o clímax das comemorações natalinas – mesmo porque, se nesse tempo algum pedido meu se realizasse, já poderíamos considerá-lo um verdadeiro milagre. Eu disse milagre? Ora, senhor Noel...

Perdoe-me novamente, mas ainda não sei ao certo como devo tratá-lo, talvez por falta de experiências anteriores nesta arte surrealista de dirigir-me a entidades impalpáveis – se bem que até agora o Brad Pitt também tem sido bastante impalpável para mim. Nunca pensei em que categoria o senhor – preciso chamá-lo assim? – talvez pudesse se enquadrar. Na dos santos católicos? Na das peças publicitárias para vender refrigerante? Na das figuras mitológicas? Na dos velhinhos excêntricos? Na dos seres sobrenaturais das datas comemorativas (no que é acompanhado de perto pelo Coelhinho da Páscoa)?

Enfim... Seja qual for seu pronome de tratamento, de antemão me sinto ridícula, a investir nesse diálogo solitário entre desacreditados. Não são só as cartas de amor que produzem esse efeito. Mas tenho a desculpa onírica do sono que me ronda e por isso, a esta hora da noite, me dou o direito de escrever o que quiser.

Não vou pedir mais desculpas. Sei bem o quanto erro todos os dias, da mesma forma que tenho consciência de que as crianças supostamente desobedientes são punidas com crueldade: ganham de presente de Natal o desprezo do bom velhinho, não é isso? Estou cansada de ameaças.

Liberte-se também, Papai Noel. Esquece essa obrigação. Desmancha essa ruga feia da vingança. Se livra desse fardo a carregar nas costas por toda a eternidade. Você vai se sentir muito melhor. Pode acreditar em mim.

Com afeto,
Marcya

4 de dezembro de 2007

uma questão de lógica

Isso acontece com certa freqüência.
Uns caras me mandam fazer uma coisa para um outro cara ficar feliz.
Vou lá, enfio a cara e faço.
Aí, os caras que me mandaram fazer a coisa para deixar o outro cara feliz, ficam imaginando que talvez a coisa ainda não o deixe feliz o suficiente; não tão feliz quanto ele poderia ficar.
Então, os caras me mandam refazer a coisa, com várias inserções de coisinhas que eu realmente não sei para que poderiam contribuir com a felicidade do outro cara.
Eu argumento com os caras que me mandaram fazer a coisa que seria melhor, antes de tudo, mostrar a coisa inicial, para ver se o outro cara vai ficar feliz ou não.
Mas os caras que me mandaram fazer a coisa não me ouvem. Agora eles querem a coisa do jeito deles, da forma como eles acreditam que poderiam fazer o outro cara super-mega-ultra feliz.
Interessante.
Com cara de poucos amigos, eu calo a minha boca, vou lá de novo e refaço a coisa, do jeito que os caras que pediram a coisa para deixar o outro cara feliz queriam.
(Detalhe: o outro cara – o que precisa ficar feliz – nem entrou na história ainda)
Bem.
Estava na cara que a coisa ia pegar.
Eu mostro a coisa modificada sob encomenda para os caras que pediram a coisa para tornar o outro cara feliz. Só que as mudanças deixaram a coisa enorme! Eu já sabia – e avisei aos caras antes – sobre essa latente possibilidade.
Para livrar a cara, os caras que queriam deixar o outro cara feliz me mandam reduzir a coisa que, grande daquele jeito, não ia caber em lugar nenhum. Foi quando eu disse que a coisa estava reduzida antes e que só ficou enorme porque eles – os caras – me mandaram mexer nela.
É.
Finalmente os caras que queriam o outro cara feliz resolvem falar com o cara cara a cara, para checar se ele ficaria feliz logo de cara, como eu imaginei desde o início. Resultado: os caras levam para o outro cara a primeira coisa de todas as que eu fiz.
O outro cara que devia ficar feliz vê a coisa curta mesmo... E fica feliz.
Com a cara no chão, os caras que me mandaram refazer a coisa cinco vezes para o outro cara ficar feliz, dão a cara a tapa: "quebramos a cara".

Ah, eu mesma nunca vi o outro cara pessoalmente. O que ficou feliz.
Mas acho que ele vai ficar feliz porque eu existo.
Tou de cara.

(Provavelmente, não é nada disso que vocês estão pensando. N. da A.)