29 de dezembro de 2006

o morcego








(Dessa vez, com a empáfia de parodiar Augusto dos Anjos. Desculpo-me de antemão. Mas foi inevitável.)

Quase meia-noite. No quarto de tevê, sono puro.
Meu Deus! E este morcego! Agora, olha isso:
Atravessou de um lado para outro, preciso,
Rodopiou pelo teto e sumiu no corredor escuro.

Não me mordeu a goela nem nada assim sensual
Que fosse vampiro, fantasiei com vontade,
Na bruta ardência orgânica da sede...
(Ando vendo tevê demais; melhor mudar de canal).

Cadê ele? – Digo – Ergo-me animada!
Vou com o gato, de lençol na mão, caçá-lo.
Empurro móveis, o olho arregalo,
Entro nos quartos, procuro, procuro e nada!


Ele não sabe que quero ajudá-lo... Chego
Bem perto. Lindinha bate um papo. Ele se senta,
Faz amizade, ri muito e diz que, de medo, está farto!


"A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra,

Imperceptivelmente, em nosso quarto!"

22 de dezembro de 2006

exigências para 2007:

Exijo cada vez mais a percepção de minha ventura.
Exijo menos desilusão, equívocos, tristeza.
Exijo controle de qualidade na vida.
Exijo sonhos cheios de verdades concretas.
Exijo tanta saúde quanto sempre.
Exijo espaço.
Exijo me olhar no espelho com boa vontade e bom-humor.
Exijo autocrítica suficiente apenas para saber que não fico bem de amarelo.
Exijo meus direitos.
Exijo um novo amor inteirinho pra mim.
Exijo desejos, champanhes, flores, sininhos, beijos e fogos de artifício.
Exijo gatos.
Exijo mais amigos carismáticos e piadistas como os que já tenho.
Exijo risadas incontroláveis todos os dias.
Exijo melhores assuntos a tratar no dia-a-dia.
Exijo cores.
Exijo mudar de opinião.
Exijo a vontade e a necessidade de exigir.
E exijo achar que posso e que isso é bom e certo.

15 de dezembro de 2006

o saci

Eu era uma criança assim: calada. Ficava olhando, analisando, associando... Por exemplo, eu nunca acreditei em Papai Noel não. Muito surreal pra mim, aquele velho gordo de barba branca, vestido de vermelho. Esquisitão. Sei lá. Não fazia o menor sentido isso. Alguns até apareciam de algodão na cara, cabelo de boneca, bochechas vermelhas de rouge. Vários e diferentes deles. Nunca me enganaram.

A lógica era bem outra. Tinha que combinar com o dia-a-dia, com o que eu via na rua, em casa. Eu precisava da dúvida. Se duvidasse, é porque já estava desconfiada da real existência. Por isso é que a verdade pura me fazia flutuar mais que o sonho. Eu acreditava em Saci. Piamente.

Eu via lá no Sítio do Pica-Pau Amarelo e era tão material aquilo, tão verossímil, que eu não encontrava argumentos para negar. Menino negro de uma perna só. OK. Já tinha visto em algum lugar. Eu acho. Fumava cachimbo. OK. O vizinho também fumava cachimbo. Passeava no redemoinho. OK. E como havia redemoinhos em Brasília na década de 70! Essa era a maior das provas. Lindos e vermelhos, rodopiavam vira-mexe nos momentos mais inusitados. Toda vez que o poeirão subia pelos ares, a certeza aguçava e me enchia de idéias e armadilhas ardilosas de capturar saci.

Juro que tentei. Arrumei a garrafa com rolha, fiz um “X” vermelho no fundo com lápis de cera, pra ele não tentar fugir. O que estava mais complicado era a peneira de taquara. Então fui usar uma de plástico, da minha mãe coar o suco. Não funcionou. O equipamento não era adequado para a empreitada. Com tanto amadorismo fica difícil trabalhar. E assim, na falta de recursos apropriados, não consegui pegar o Saci, ainda que com abundância de matéria-prima.

O tempo passou. Muito. Nunca pensei que um dia fosse acabar ficando com raiva dele, por motivos profissionais, é claro. É que o Saci virou burocrata. Arrumou emprego em Brasília e agora faz lobby no Congresso. Os redemoinhos se foram. Quero ver é quem captura um agora.

12 de dezembro de 2006

a flor

Nasceu uma florzinha na espada-de-são-jorge
(é isso mesmo).
No começo, pensei que fosse uma samambaia.
Verdade, a talzinha parece uma samambaia no nascimento
(tão poucas coisas se parecem com uma samambaia além da própria!...)
Então
A tal espada-de-são-jorge
(que parece mesmo uma espada)
Começou a desabrochar, dar brotinhos e espichar bracinhos pra todo lado
(Uma loucura!)
Uma planta muito verde-escura, com bordas amareladas
Uma folha só em cada galho
Comprida e pontuda
Arraigada no vaso de argila com pedrinhas brancas
Plantada numa varanda minúscula
De um apartamentinho diminuto.
E a florzinha-samambaia lá, meio deslocada
(começo a achar que era um disfarce)
Alegrinha e florida apesar de tudo,
Na horinha mais certa colocou as pétalas de fora
E se ofereceu ao mundo como tal.
Que coisa mais estranha...
Como foi que surgiu ali?
Em que outros lugares absurdos
Será que pode aparecer uma flor?

3 de dezembro de 2006

trindade

Pois é.
Pensei melhor e concluí
Que eu agora sou três
(fascinante esse negócio de trindade).
Então,
Eu sou o ego (a parte mais sem graça).
Descobri que a Lindinha (meu gato)
É o id
(não, ela não é idiota).
E o alter, coitado,
Esse está perdido por aí,
À procura de um W que o faça ter sentido.

23 de novembro de 2006

o sorriso

Eu queria que o sorriso saísse
Mas ele não quer.
Está preso aqui
Em algum lugar entre o estômago e o coração,
Agarra-se nas alças dos intestinos
Empurra os pulmões com os pés
E não sai de jeito nenhum.
Quando peço, com toda a educação,
Ele berra lá de dentro pra mim
Eu não vou, eu não vou, eu não vou!
Parece até criança de birra
De tanto que me desafia e ofende esse sorriso.
E eu que me sentia vazia
Descobri que o tenho aqui, preso e choroso,
Contrariando a vontade da alegria que ele deveria ser
E o ofício de se mostrar assim
Para quem o quiser ou pedir.

18 de novembro de 2006

auto-retrato

Eu pensei que a vida fosse tão bonita
Quanto um quadro de Van Gogh.

Que o jardim de íris existisse de verdade,
Num lugar que eu iria conhecer um dia
Apesar da flor branca,
No meio de tantas azuis.

Que aquele quase choro que vi suspenso
Bem no olho do retrato,
Tão sentido da incompreensão do mundo,
Poderia ser de pura alegria.

Que os girassóis enlouquecidos de medo
Brincavam de ser fogo vivo
Para fugir do escuro que não são
Ao crepitar de calor.

Que os tentáculos do céu estrelado
Viriam acariciar os ciprestes apontados
Que ali desenharam cometas
Em convulsão de galáxias.

Que os corvos voariam para muito longe
Sumiriam para sempre no horizonte lilás
E os campos de trigo brilhariam novamente
Como o sol do meio-dia.

Eu pensei que a vida fosse tão bonita
Quanto um quadro de Van Gogh.

E ainda quero acreditar
Que não me enganei.

15 de novembro de 2006

candidatura

Candidata alta, solteira, simpática
Dispõe-se a uma vaga.
Você, que elege,
Tem que me escolher!
A minha plataforma
Está no armário, não se preocupe.
E tenho propostas
Realmente interessantes...
Pro seu governo, eleitor,
Vote em mim!

8 de novembro de 2006

fábula











Meu amor é inútil
Pois o tenho aqui sem uso.
É uma sensação que a cigarra velha
Encasulada anos e anos debaixo da terra
Deve ter tido, meditando,
Tanto tempo à espera só
Na sofreguidão do ar...
A cantorinha sonha com o dia em que
Numa manhã madura
Irá se desencavar
Depois de muito sacrifício
E chamar por seu amor
(Ela chama por seu amor!)

Que nem sempre vem.
Algumas conseguem que ele tenha
Ouvidos de escutá-las
E morrem felizes na esperança das pupas
Que vão levá-las a uma nova história
Por mais tempos e tempos.
As outras continuam cantando bolerões
E lacrimejando
Todas as primaveras
Nas esquinas dos jardins deflorados
Até sumirem nas artes das crianças
Na pressa dos carros nas ruas
Ou nas garras de um gato brincalhão.

3 de novembro de 2006

a teia












Uma aranha fez sua teia em meu nariz.

Se estabeleceu calmamente na ponta
Avaliou a vizinhança
Viu que era tão tranqüilo que poderia sossegar.

E aqui está, a teia dela
Delicada e intocada
Já se faz uns bons meses...

A aranha está muito satisfeita.
Mas eu não!

26 de outubro de 2006

o monstro da lagoa negra










Ele saiu das águas esbaforido. Um monte de gente correndo atrás, fugindo, gritando... Gente. Se não é nada fácil ser gente, imagine esse negócio de ser um monstro. É uma carga muito pesada para o indivíduo, entende? Meio elo perdido, meio anfíbio, meio popstar, o Monstro da Lagoa Negra... Tananammm (grave)... Tananammm (agudo)... A trilha sonora específica, toda a vez que aparece em cena... Pode causar traumas profundos.

Apesar de tudo, a patinha escamosa de unhas cortantes tinha polegar opositor. Muito humano isso. É bem verdade que não sabia exatamente como fazer uso dele. Acabou sufocando uns brasileiros no filme, coitado, acho que só queria fazer amigos, dar um abraço apertado. O povo brasileiro é tão caloroso... Mas o Monstro da Lagoa Negra – Tananammm (grave)... Tananammm (agudo)... – não tem sentimentos. Como todo o que é diferente, foi julgado e condenado antes mesmo de saber que precisava se defender.

O erro do monstro foi se apaixonar – esse é o erro de todos os monstros! E bem por uma gringa, a mocinha do filme, logo ele, um monstro amazônico, verdinho, exímio nadador, cheio de grunhidos tropicais. A mocinha não sabia – nunca sabem – e nem queria saber, se o monstro estava valendo a pena. Não falava a língua dele, tapava os olhos, quebrava o eixo, se esgoelava, não percebia a grandeza de suas intenções. O monstro só queria ser amado.

A Lagoa Negra é o seu lar. Preso ali vive livre e feliz. Não precisa se importar com o que pensam dele. E quem invade seu mundo, tem que se apresentar verdadeiro.

Eu procuro entender o monstro. Quem é que, vez ou outra, não se sente um?

O Monstro da Lagoa Negra – Tananammm (grave)... Tananammm (agudo)... –, debaixo daquela fantasia, sou eu.

23 de outubro de 2006

pifada

Estive de viagem.
Minha internet pifou.
Não tenho tempo para escrever agora...
Estou trabalhando!
Por favor, não mudem de canal!

15 de outubro de 2006

gato mia

Hoje o gato amanheceu falando. Olhei pra ele e disse “gato não fala”, no que respondeu “quantas vezes preciso repetir que sou fêmea?” Quantas vezes? Várias vezes. Por favor, queira repetir várias vezes. Estou muito interessada em ouvir. Não é todo dia que a gente vê um gato falante. Desculpe. Gata. Por que você não disse isso antes?

Sempre chamei o gato de gato. Desde que o encontrei, lá se vão cinco anos e doze filhotes. Passamos poucas e boas juntos. Várias casas, apartamentos, viagens, brigas, temporadas na casa da mamãe, pisões no rabo, arranhões, miadaria no meio da noite, idas ao veterinário, ratinhos de brinquedo e de verdade, lagartixas, sumiços, bolas de pêlos, pêlos e mais pêlos, ronronares, toneladas de areia, espreguiçadas, manhas e dengues.

“Que é que você quer? Diga logo. Só não venha me dizer agora que é a minha consciência”. Ele disse “não, não sou a sua consciência. Sou a sua desculpa”. Droga de gato chato. Só podia ser gata. As fêmeas são tão existencialistas! Era só o que me faltava...

“Desculpa? Que desculpa?” – perguntei. “Você já tem tudo o que precisa pra ser só.” – respondeu o gato. “Toda vez que eu mio, escondida no escuro, você vem me encontrar. Me coloca no colo, brinca um pouco, se senta no sofá, calça os chinelos e voltar a assistir à tevê.” – continuou. “Mas você nem mia mais! Agora você fala!” – revidei. “Isso”, ele falou mesmo, “é pra você parar de me procurar. Deixar de tatear no nada conhecido das suas paredes, à procura do gato que, garanto, vai estar sempre aqui. No mesmo lugar.”


Olhei através da janela fechada. A tevê ligada, o computador no colo, hoje o telefone não tocou e eu também não toquei nele. O cinema que prometi a mim mesma se foi com as horas. Estou desarrumada e ainda não jantei. As luzes da casa continuam apagadas. Estou no escuro.

Gato mia.

12 de outubro de 2006

o rato

Tinha um rato no meu caminho hoje.

O bicho atravessou a pista diante de mim, bem na hora em que o sinal ia ficando amarelo. Tive que decidir: matava ou não matava o rato?

Era um ratinho preto. Não muito grande não. Mas estava dia claro. Pude vê-lo quase dentro dos olhos. Cauda longa. Patas curtas. Meio hesitante, correu.

Carros atrás de mim já estavam parando. O pardal, o sinal, o rádio alto, óculos escuros, compras, minha mãe gritando “mata o rato, mata o rato”. Foi assim que, numa fração de segundo, ficamos frente a frente. Nós três. O rato, a humanidade e eu.

Me lembrei da ratazana existencialista de Günter Grass (aquele mentiroso). Do Mickey Mouse, do Jerry, do Stuart Little e até do PiuPiu, que apesar de não ser rato, era como se fosse. Me lembrei da peste negra. De todos os ratos da minha vida (indigestos como os sapos que tive que engolir). Dos dois ratinhos de verdade que criei (em menos de duas semanas eram nove). A fêmea me mordeu. E saiu sangue!

Pensei nos bilhões de ratos de laboratório que morrem todos os dias por causas tão nobres quanto a reversão de doenças graves e não tão nobres como o creme anti-rugas da titia. Pensei no Pink e no Cérebro. No domínio do mundo. E, finalmente, em todos os gatos sofridos e injustiçados pelos séculos e séculos afora.

Freio. Fui multada no semáforo. Aquele maldito pardal fotografou a placa do meu carro. Mas quem sou eu para fazer justiça com as próprias mãos? Ratos estão por toda a parte. E sempre estarão.

25 de setembro de 2006

os sapos











(com a soberba de parodiar Manuel Bandeira)

Vão os sapos se enfurnando
Na garganta bem profunda
E aos pulos engordando
Entalados na penumbra

A luz nem procuram, se a temos.
Enterram-se, os verruguentos,
E quando os esquecemos
Berram alto, lá de dentro.


Tantos sapos engolidos
Que a cantarola sem fim
Martela em meus ouvidos
“Foi”, “Não foi”, “Foi sim”!


Asco verde, gordo e feio,
Gelado de acre gosto
O alívio que não veio
Me estrangula num sufoco!

A saparia malévola
Repete-se ao infinito
Frio soluço na treva
Que não desce, nem no grito!

Fiquem, sapos da minha vida!
Pouco importa o que me lembrem
A mim não deixarão saída
Pra me despertar, coaxem! Sempre!

24 de setembro de 2006

a exterminadora do futuro

Ziiiim Ziiiiim Uooooo Uoooooo Zuuum Zuuum...
Brasília, 21 de setembro de 2006.
Aproximação ocorrendo conforme o programado.
Cadê ela?

Eh, uh, ahn...
Será que é aqui mesmo?
Marcya? No lounge do segundo andar. Mas eu não recomendo que entre lá desarmado...
Estou programado para me defender.
Você é quem sabe... Eu avisei...
Putz, me mandam pra cada lugar...
Ei, quem é esse cara?
Garçooooooooommmm!
Penetra... Ui!
Oba, vai ter streap-tease!!!
Meu amigo, isso aqui é uma reunião particular de mulherzinhas que não se vêem desde o segundo grau...
Ai!
Até que ele não é de se jogar fora...
Muito velho...
Você é a Marcya?
Sou eu sim.
Bem, eu venho do futuro com uma missão...
Do futuro? Jura?
Sim, a minha missão é...
E você me viu lá?

Sim. Mas...
E eu estava bem?
Bem...
De que futuro exatamente você veio?
Do ano de 2030 e...
Puxa, e eu estou bem?
Ahn... Muito bem.
Com sessenta anos! Seu bajulador... Isso quer dizer que eu fiz plástica?
Eh, uh, ahn... Acho que sim.
Que desaforado. Como você pode ter tanta certeza?
Eh, uh, eu... Ziiiim Ziiiiim Uooooo Uoooooo Zuuum Zuuum...
Minha filha, você está dando tilt no bofe!
Dando tilt, que coisa mais antiga! Alguma coisa ainda dá tilt hoje em dia?
Acho que ele é da polícia.
Não, da polícia ele não é que eu conheço a galera!
Acho que ele bebeu demais. Tá com uma cara de que vai vomitar...
Com essa roupinha de Village People... Acho que ele é gay!
A minha missão... Ziiiim Ziiiiim Uooooo Uoooooo Zuuum Zuuum Zuuum Zuuum!
Ai, rapaz você tá tão desorientado...
Sai do armário...
Ele é o armário!
Uuuuuuuui!
Quer dizer que ele não é o garçom?
Programação temporal indo pras cucuia... Uooooo Uoooooo Uooooo Uoooooo.
Eu falei que ele era gay...
Ei, bem, para com esse papo, senta aí, bebe um Lambrusco e abre seu coração...
Mas, mas, mas... Zuuum Zuuum Ziiiim Ziiiiim... O futuro...
Com tanta coisa pra pensar aqui no presente?
Deixa isso pra lá e tira uma foto da gente... Você vai se divertir muuuuuuuito mais.

10 de setembro de 2006

inquisição

O gato me observa.

De vez em quando ele faz assim. Escolhe um bom lugar, senta-se diante de mim e estático fica, como uma escultura egípcia, de olhos arregalados, a me perceber, com sua sutil sensibilidade felina.

Gato, para com isso.

Sinto-me inquirida. Que é que você quer com esse olhar azul? Tem ração. Tem agüinha. Tem leite. Tem ratinho de brinquedo. Tem cadarços. Tem poltrona de tecido. Tem quentinho. Tem novelo. Tem bola de papel amassado. Tem janela aberta. Tem graminha. Tem caixa. Tem armário. O que mais um gato pode querer, pergunto.

Fala!

Ele pisca uma vez ou duas. Considera. Analisa. Ameaça soltar uma ironia. E permanece ali, a me hipnotizar. Ah, esqueci de dizer: o gato é fêmea.

Não me assusta não.

Dizem que o gato vê o outro mundo. Ou um outro mundo, na perspectiva flexível daquele que é capaz de sempre, sempre cair de pé.

7 de setembro de 2006

movimento 36










Num milésimo de segundo dramático, Deep Blue desafia Kasparov. Raciocínio filosófico, conceitual e brilhante.

Duzentos milhões de cálculos por segundo e a máquina se torna humana pela primeira vez. Kasparov volta a ser só Garry. Blue vence. Era o lance 36.

Agora sou eu. Estou aqui, diante dele. E mal e mal sei jogar xadrez.

O movimento anterior me imbuiu de dúvidas e dor. Em 35 jogadas, cometi desacertos imperdoáveis. Alguns lances de mestre, sou obrigada a admitir. Mas o fato é que o conjunto deles me levou a esse Xeque.

O relógio me empurra na pressa do tiquetaque. O jogo não para. E o rei pode morrer.

3 de setembro de 2006

dindinha










Madrinha fadada...
Longe de ser fada
Talvez enfadonha
Ou fade-out.

Com sua varinha curta
Mesmo sem condão
Transformou abóboras em doces!
Ratinhos em pelúcia!
Carruagens em carrinhos de brincar!

Dindinha se esforça
Espera aquela agüinha
Na maior expectativa
E quer muito não perder o sapatinho
Antes do meio-dia...

Príncipe encantado

De tudo ri.
Enzo nem sabe
Mas quem faz a mágica

É ele!

28 de agosto de 2006

estribilho

No meio do escuro nada
Entre os meus cabelos de cipó
Preso, um passarinho.

De onde saiu não me lembro
Por qual janela entrou
O inócuo

Nem se debatia
A não ser em si mesmo
E me fazia rir

Cantou, incauto, um fato ou dois
Tossiu, pediu grãos
Deu voltinhas pelo ar

E ainda que eu não o encontre
Nos horizontes que irradiam desde já
Sei que me entreabriu uma pestana
A que estava a mais cochilar

E agora que aquele voa
Antevejo mil duzentos e cinqüenta e sete
Passarinhos estribilhando

E eu ali
A finalmente
Ouvir a música

21 de agosto de 2006

a girafa e a bailarina











A bailarina que existe em mim não se conforma com a girafa que eu sou. Tantas vezes quantas tente bailar, graciosa, pelos palcos, serão as vezes em que vai cambalear, grotesca, perdida, até encontrar o chão.

Esse desequilíbrio não tem fim.

Vento, nuvem, asa de borboleta, suspiro, algodão-doce, bolha de sabão, passarinho, folha de papel em branco, musiquinhas de ninar, pétalas de margarida, piscadelas de flerte, joaninhas e a pequena bailarina rodopiam sob a cúpula de cristal. O animal acuado inveja. Camelopardalis também está aqui, bailarina. Presa pra sempre numa jaula invisível.

O gigante caminhante vai, na lentidão de um filme triste, em direção a seu destino. As batidas do coração cortejam os tambores dos ancestrais longínquos, que cantam com alegria. Canções que exaltam os coloridos mágicos das terras distantes e para sempre amadas de África, que um dia abandonamos sem saber.

A bailarina chora de saudades da girafa.
Eu não concordo com a vida.
E o meu ser não vai mudar.

15 de agosto de 2006

ruínas

Comecei a erguer uma casa.

De início, não tinha eu as maiores ambições. Queria apenas um lugar onde pudesse me saber feliz. Já morei em alguns diferentes espaços. Mas nenhum que eu chamasse verdadeiramente de lar. E sem nada mais a perder, num estranho segundo, comecei a construção.

Fazia tijolo, concreto armado, pau pra toda obra, madeira de lei, azulejo relevante, era vidro, pedra no sapato, dava na telha, parafusos a menos, ficava só o prego, martelava no dedo. O desalinhamento não veio junto, como eu temia. Subiu tudo numa rapidez de muito investimento.

E assim, sem querer, o que nasceu lugar para morar... Tinha virado um castelo. Com tantos cômodos aconchegantes, tantos vãos e voltam, escadas de caracol, salas imensas, claras varandas, quartos crescentes, jardins suspensos, fechaduras cheias de olhos, armários de C. S. Lewis, cantinhos a perder a conta, portas para outras dimensões, que às vezes desaparecia para me achar lá dentro. Encontrava cem janelas abertas para as nuvens e o sol. Veneza ou Kuala Lumpur. Para a máquina do tempo. Para as savanas africanas ou para uma lagoa dos Lençóis. Na minha própria casa.

Até que, numa noite sem chuva, de volta, cansada depois de um dia de trabalho... Ela não estava mais ali. A casa que eu levantei com carinho e suor foi mais uma vez ao chão, como todas as outras, com tudo o que eu amava lá dentro. Ruiu, e até hoje não sei bem se veio inteira abaixo ou se a demoliram sem pressa, às colherinhas de café sem açúcar.

Sei eu que as ruínas vão ficar, expostas e misteriosas, lindas e gratuitas, abertas à visitação pública. Ou até que reapareça, por fortuito que seja, o desejo de um dia as reconstruir.

13 de agosto de 2006

a múmia







A múmia sou eu. Imóvel, enfaixada, inerte, parada, dura, seca, imutável, inflexível. Que saqueadores vão achar a minha tumba, para despertar-me depois de séculos de sono irresoluto? Não tem maldição. Só agradecimentos. A múmia quer acordar.

Os rituais dos antigos e os filmes de Hollywood já prenunciavam essa volta, sequiosa pela luz de Amon-Ra.

E eu, a múmia menina, cheirando a perfumes belíssimos e ornada de jóias de ouro e flores esculpidas, cercada de um séquito de estátuas de pedra, sonho com lá fora.

Anubis faz caretinhas de lamúrias, enquanto Nefertiti diz: “Calma, minha filha... Temos a eternidade!...”

Cansei da eternidade, rainha. Do fundo da minha cripta escura, espio com inveja os felizes efêmeros banhados pelo dia.

Espero encontrá-los no Vale dos Reis.

8 de agosto de 2006

frutas ácidas

O ácido da minha boca não vai sair. Corrói, mas, estranhamente, transige o doce, que vive por ele, lado a lado, sem, no entanto, poder se misturar. E o doce que por ele é, sofre de amores pelo ácido. Que química é essa que falta, que ligação covalente, que doses de prótons e elétrons, que não chega para uni-los nunca?

Pensei primeiro que esse amor fosse fruto do abacaxi muito maduro, que cortei e me cortou. Quase verteu sangue essa dor! Depois tive a dúvida do limão, a suspeita da laranja, um tomate que levei na cara! O amargo se meteu para reivindicar seu lugar no doce coração. Mas não há fruta que resolva esse impasse, dos gostos que se complementam sem se misturar. Não tem salada nem explicação.

E quisera o doce ser tão sulfúrico, queimar mesmo, para deixar marcas visíveis e indeléveis. E quisera o ácido viver mais açucarado, se entregar sem medo ao néctar, melar ao toque gostoso de todo dia...

Mas histórias de amor são assim: tanto mais bonitas quanto mais impossíveis, tanto mais prováveis quanto mais imiscíveis, que se dessa forma não fossem, não teriam elas sabor.

5 de agosto de 2006

mergulho em apnéia













Eu mergulhei de cabeça, cheia de caraminholas maduras. Sempre soube nadar, mas naquele momento exato... Esqueci. Deu um branco total de flutuações, cachorrinho, bóia, bote inflável, borboleta, natação em geral. E assim fui afundando.

Olhei para os lados ao descer. Era só aquele silêncio de tímpanos estourados e cabelos mesclados com o movimento. Vi umas bolhinhas poucas, tão indolentes que, pensei eu, “vão afundar também”.

De repente, o imprevisto: Jacques Mayol aparece na minha frente! E, é claro, me ultrapassa rápido, sumindo no meio da imensidão azul. Na seqüência passa um golfinho bobo, fazendo bico de desdém.

Uma pequena sereia tricota, velhinha, ainda linda, porém muda como um peixe. Queria ter virado borbulhas, se misturando às ondas do mar, mas os estúdios Disney não deixaram. Seu príncipe nasceu, cresceu e morreu. E ela continua ali, pelos milhares de anos, se ressentindo da falta que Andersen faz.

Atlântida não era uma companhia cinematográfica fadada a afundar! Vi seus peixes com cara de gente, sua cidade avançada, Bob Esponja e Ulysses Guimarães jogando canastra com uma ostra recôndita. Titanic submergiu para ser a bela casa de tantos peixinhos...

Foi quando cocei as orelhas molhadas que me lembrei: “cadê minhas brânquias?” Nem baleia era – ou estava -, apesar de colega mamífera, mesmo com uns pouquíssimos quilinhos fora de lugar. Muito menos anfíbia, pingüim, foca ou cavalo-marinho.

Oh, mares! Jacques Mayol está voltando... Tenho que me agarrar ao desejo de Jacques Mayol de respirar.

E sendo assim, no poço sem fundo da minha quimera, permaneci. E ainda hoje vivo na esperança de encontrar o golfinho desdenhoso, que um dia, creio, terá que emergir para tomar ar.

27 de julho de 2006

sobre cinzas










Depois das cinzas, algo se recompôs. Não era mais o que tinha sido e não parecia muito melhor, assim, de olhar rápido... Disse que vinha nova, nova, feita outra vez, com frescor mocinho, mas lá no fundo do olho, lá onde a gente procura o brilho de dentro, ficava com aquele cheiro de coisa velha, gosto de ontem, chafurdando bolor nos cantinhos da alma.

Ai, que nessas horas tem sempre um pra dizer que o passado tem que ficar lá atrás. Fala mesmo, meu amor, que um dia você também topa de encontrão com o seu. Bem na sua frente.

Pois assim, se procurando e encontrando nesses barrancos, meus destroços teimaram em juntar-se. Não foi de uma vez não. Nem nunca será. Mas se levantaram, unidos aos pontinhos mal cosidos de eterna principiante na vida. Fênix das mais raras (como todas elas, aliás), ainda tenta enxergar as próprias pernas, sem perceber que já a sustentam de pé.