29 de dezembro de 2006

o morcego








(Dessa vez, com a empáfia de parodiar Augusto dos Anjos. Desculpo-me de antemão. Mas foi inevitável.)

Quase meia-noite. No quarto de tevê, sono puro.
Meu Deus! E este morcego! Agora, olha isso:
Atravessou de um lado para outro, preciso,
Rodopiou pelo teto e sumiu no corredor escuro.

Não me mordeu a goela nem nada assim sensual
Que fosse vampiro, fantasiei com vontade,
Na bruta ardência orgânica da sede...
(Ando vendo tevê demais; melhor mudar de canal).

Cadê ele? – Digo – Ergo-me animada!
Vou com o gato, de lençol na mão, caçá-lo.
Empurro móveis, o olho arregalo,
Entro nos quartos, procuro, procuro e nada!


Ele não sabe que quero ajudá-lo... Chego
Bem perto. Lindinha bate um papo. Ele se senta,
Faz amizade, ri muito e diz que, de medo, está farto!


"A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra,

Imperceptivelmente, em nosso quarto!"

22 de dezembro de 2006

exigências para 2007:

Exijo cada vez mais a percepção de minha ventura.
Exijo menos desilusão, equívocos, tristeza.
Exijo controle de qualidade na vida.
Exijo sonhos cheios de verdades concretas.
Exijo tanta saúde quanto sempre.
Exijo espaço.
Exijo me olhar no espelho com boa vontade e bom-humor.
Exijo autocrítica suficiente apenas para saber que não fico bem de amarelo.
Exijo meus direitos.
Exijo um novo amor inteirinho pra mim.
Exijo desejos, champanhes, flores, sininhos, beijos e fogos de artifício.
Exijo gatos.
Exijo mais amigos carismáticos e piadistas como os que já tenho.
Exijo risadas incontroláveis todos os dias.
Exijo melhores assuntos a tratar no dia-a-dia.
Exijo cores.
Exijo mudar de opinião.
Exijo a vontade e a necessidade de exigir.
E exijo achar que posso e que isso é bom e certo.

15 de dezembro de 2006

o saci

Eu era uma criança assim: calada. Ficava olhando, analisando, associando... Por exemplo, eu nunca acreditei em Papai Noel não. Muito surreal pra mim, aquele velho gordo de barba branca, vestido de vermelho. Esquisitão. Sei lá. Não fazia o menor sentido isso. Alguns até apareciam de algodão na cara, cabelo de boneca, bochechas vermelhas de rouge. Vários e diferentes deles. Nunca me enganaram.

A lógica era bem outra. Tinha que combinar com o dia-a-dia, com o que eu via na rua, em casa. Eu precisava da dúvida. Se duvidasse, é porque já estava desconfiada da real existência. Por isso é que a verdade pura me fazia flutuar mais que o sonho. Eu acreditava em Saci. Piamente.

Eu via lá no Sítio do Pica-Pau Amarelo e era tão material aquilo, tão verossímil, que eu não encontrava argumentos para negar. Menino negro de uma perna só. OK. Já tinha visto em algum lugar. Eu acho. Fumava cachimbo. OK. O vizinho também fumava cachimbo. Passeava no redemoinho. OK. E como havia redemoinhos em Brasília na década de 70! Essa era a maior das provas. Lindos e vermelhos, rodopiavam vira-mexe nos momentos mais inusitados. Toda vez que o poeirão subia pelos ares, a certeza aguçava e me enchia de idéias e armadilhas ardilosas de capturar saci.

Juro que tentei. Arrumei a garrafa com rolha, fiz um “X” vermelho no fundo com lápis de cera, pra ele não tentar fugir. O que estava mais complicado era a peneira de taquara. Então fui usar uma de plástico, da minha mãe coar o suco. Não funcionou. O equipamento não era adequado para a empreitada. Com tanto amadorismo fica difícil trabalhar. E assim, na falta de recursos apropriados, não consegui pegar o Saci, ainda que com abundância de matéria-prima.

O tempo passou. Muito. Nunca pensei que um dia fosse acabar ficando com raiva dele, por motivos profissionais, é claro. É que o Saci virou burocrata. Arrumou emprego em Brasília e agora faz lobby no Congresso. Os redemoinhos se foram. Quero ver é quem captura um agora.

12 de dezembro de 2006

a flor

Nasceu uma florzinha na espada-de-são-jorge
(é isso mesmo).
No começo, pensei que fosse uma samambaia.
Verdade, a talzinha parece uma samambaia no nascimento
(tão poucas coisas se parecem com uma samambaia além da própria!...)
Então
A tal espada-de-são-jorge
(que parece mesmo uma espada)
Começou a desabrochar, dar brotinhos e espichar bracinhos pra todo lado
(Uma loucura!)
Uma planta muito verde-escura, com bordas amareladas
Uma folha só em cada galho
Comprida e pontuda
Arraigada no vaso de argila com pedrinhas brancas
Plantada numa varanda minúscula
De um apartamentinho diminuto.
E a florzinha-samambaia lá, meio deslocada
(começo a achar que era um disfarce)
Alegrinha e florida apesar de tudo,
Na horinha mais certa colocou as pétalas de fora
E se ofereceu ao mundo como tal.
Que coisa mais estranha...
Como foi que surgiu ali?
Em que outros lugares absurdos
Será que pode aparecer uma flor?

3 de dezembro de 2006

trindade

Pois é.
Pensei melhor e concluí
Que eu agora sou três
(fascinante esse negócio de trindade).
Então,
Eu sou o ego (a parte mais sem graça).
Descobri que a Lindinha (meu gato)
É o id
(não, ela não é idiota).
E o alter, coitado,
Esse está perdido por aí,
À procura de um W que o faça ter sentido.