24 de setembro de 2007

segundo conto: ratos e ratos

Roc-roc-roc-roc-roc... A roedura não parava. Sons de patinhas correndo de um lado para o outro. De vez em quando, uns chiadinhos trocados, como se fossem indicações de tarefas a serem executadas. Muito engraçado! Roc-roc-roc-roc-roc... Pareciam até trabalhadores empenhados na concepção de um objetivo comum, operários incansáveis no fervor ininterrupto do dever. Não se mostravam, os tímidos, mas o barulhinho que faziam na labuta dedicada se ouvia na casa toda. Roc-roc-roc-roc-roc...

Por isso, há semanas que Ed não conseguia dormir. De manhã, via bostinhas, pêlos, pedacinhos mínimos de madeira roída por todo o lado – vestígios dos invisíveis. Devia engolir um monte desses dejetos nos momentos em que ressonava, babando exausto da insônia, de boca aberta. Mas ele se perturbava muito menos com a sujeira que com o saber dos bichos ali, como que conspirando, a noite inteira. Já estava ficando paranóico. Logo ele, que achava esse negócio de paranóia uma frescura.

Ednaldo era um cara que a gente pode chamar de repulsivo. Além de grosso, era porco, com uma vocação natural para a sujeira. Na construção onde trabalhava, era conhecido pela alcunha de “Fed”. Ninguém queria ficar muito perto dele – os colegas tinham medo de levar um coice ou pegar umas pulgas. Chegava em casa daquele jeito; banho, que é bom, nada. Pelo menos não tinha amigos, nem parentes próximos; morava só, num sobradinho desmontando, de um subúrbio pouco familiar da cidade. A casa inteira cheirava mal, fedor acre de descaso, podre, azedo, mofado, tudo junto.

Mas Ed vivia bem, dentro da sordidez comum a seu dia-a-dia. Ele não se importava com nada. Até que, uma noite, enquanto palitava as sobras do jantar nos dentes com a ponta de uma faca, ouviu um barulho esquisito. Vinha da embalagem de alumínio do prato feito de anteontem, que ainda estava no chão, perto da lixeira transbordando mais de duas semanas de porcariada.

Num súbito interesse, levantou o olhar. O recipiente se mexeu. Ednaldo aproximou-se, na espreita. A quentinha pressentiu o perigo e aquietou-se. De um pulo, Ed levantou a embalagem rapidamente e descobriu: era um rato enorme de gordo. O bicho saiu correndo apavorado – acho que ficou enojado da visão –, mas Ed não podia deixá-lo escapar. No impulso, atirou a faca e acertou em cheio o ventre do animal, que caiu estrebuchando num guincho sofrido e estridente.

Ed chegou mais perto para ver o resultado de sua obra. Puxou a faca. A criatura triste revirava-se na agonia, banhada em sangue quente. Com a maior satisfação, Ed viu saírem daquela barriga uns dez fetos. “A cretina da ratazana tava prenha! Ia encher a minha casa de gabiru, a desgraçada.” Alguns dos recém-nascidos pareciam estar vivos. Contorciam-se no meio de um muco repugnante, desesperados pela vida. Não adiantou. Um pisão os esmigalhou todinhos. Rindo-se, Ed olhou para a sola do pé. “Tão pensando que iam escapar, otários?”

Roc-roc-roc-roc-roc... Desse dia em diante, perdeu o sossego que tinha – uma vez que a companhia das moscas já não o incomodava há tempos. “Não agüento mais essa praga na minha cabeça!” Num vaivém incessante, os roedores continuavam seu labor. “O que será que tanto fazem, esses diabos?” Roc-roc-roc-roc-roc... Numa intrigante obstinação, os ratinhos tocavam a empreitada, sem recear nem um pouco as ameaças daquele sujeito asqueroso. Se duvidar, até se divertiam com isso. Agora, o forro do teto do sobrado era o palco principal do espetáculo. Curioso... Às vezes parecia até uma orquestra, tão ritmada e constante! Fosse Ed uma pessoa menos rude, teria notado a beleza da execução. Roc-roc-roc-roc-roc... “Acabem com essa zoeiraaa!”

Farto do ruído interminável, Ed resolveu contra-atacar. Arrumou umas dez ratoeiras e colocou-as em todos os cantos possíveis. Passados uns dias, viu que não adiantava, era como se nada houvesse: estranhamente, foram todas ignoradas. Aquele queijo fétido ficava ali, apodrecendo, de ração para as baratas engordarem. “Merda”, vociferou Ed, em seu costumeiro palavreado. “Ainda fui gastar dinheiro com rato!”

Arrumou, então, um gato vagabundo, com a incumbência de exterminar os invasores. Mas o felino não agüentou, nem os maus tratos nem as refeições – restos do Ed. Certamente, algumas lixeiras do bairro tinham coisa melhor. O bichano foi namorar em cima do muro e fugiu de vez, não sem antes colaborar com a percussão dos incansáveis roedores cantando uma melodia tortuosa durante a noitada. “Tá mancomunado com os ratos, imbecil? Vai! Passa fora, porqueira”, praguejou Ed, atirando um sapato pestilento no bicho.

Roc-roc-roc-roc-roc... “Me deixem em paz!” Começou a achar que estava ficando maluco. “É isso que vocês querem! Me enlouquecer!” Roc-roc-roc-roc-roc...

Já era dia claro quando Ed fechou os olhos.

Assim que o homem adormeceu, os ratos silenciaram, pela primeira vez. Logo começaram a sair de suas tocas e, em pouco tempo, um bando imenso correu para fora do casarão, em plena luz do sol. Dezenas deles: grandes, pequenos, rechonchudos, magrelos, saíram aos trambolhões, por cima uns dos outros, numa debandada em desvario. Pessoas na rua gritaram, mulheres fecharam portas e janelas. Parecia uma praga do Egito, que o mundo ia se acabar, disseram alguns. Mas os pequeninos queriam apenas se esconder de novo, desaparecer na escuridão fraternal de um bueiro, libertos, para sempre. Tinham terminado, enfim.

De repente, ouviu-se um grito lancinante de pavor. Um estrondo terrível sacudiu a rua toda. A poeira subiu alto. Chamaram os bombeiros, que demoraram muito a chegar. Os vizinhos nem lamentaram tanto. “Casa velha, era questão de tempo acontecer uma tragédia”, disse um. “O sujeito que morava ali não cuidava de nada, o lugar ficava um lixo, abandonado aos ratos” concluiu outro. “Que Deus o tenha. Ainda bem que alma não fede”, finalizaram, com mal disfarçados sorrisinhos. Os seres humanos sabem ser insensíveis à desgraça alheia.

Mas os ratos, não. Unidos, conhecem a força que têm juntos, para perpetuar a espécie. Precavidos, se preservam. Só gostam de passear fora dos esgotos à luz do luar, quando conseguem relaxar, se esquivar da perpétua perseguição. É assim que eles dissipam suas dores de excluídos da convivência pacífica com os outros animais, condenados que são pelo estigma da imundície que carregam. Isso, até o dia em que se cansarem de assumir a escória da Terra. Inteligentes como são, seriam capazes de tudo.

10 de setembro de 2007

primeiro conto: o jardim

(Este conto participa de um concurso. do Núcleo de Literatura da CD. O final já existia desde muito; estava escrito aqui no blog)

Pontinhas de galhos ressequidos denunciavam os bulbos que dormiam e, sem querer, saltavam da terra escura exposta ao chão cru. As forquilhas que desejaram ser brotos foram deixadas ao acaso do tempo, esquecidas nos canteiros desfeitos em abandono. Havia muitas outras coisas que se fazer ali, antes de se pensar em flores. O que um dia foi visto como jardim era agora um espelho perfeito para o recinto de tantos aflitos.

Casa de repouso era um epíteto ameno para o sanatório de paredes forjadas sobre pedras frias. Apesar de tudo, era um lugar limpo e arejado, como poucos naquele tempo. Lá se sofria e se orava. As freiras passavam de um lado para o outro em suas vestes monótonas, cumprimentavam-se, apressavam-se em cuidar de seus doentes. Chamavam os quartos de “celas”.

Era verão e eu gostava de caminhar quando havia luz e calor. Sonhava em sair daquele prédio insípido para ver de perto o verde dos ciprestes do outro lado dos muros, mas não me deixavam. Queria afastar-me dos tons de cinza que venciam o cubículo de ângulos tortos onde tentava dormir às noites. A minha vida inteira já havia sido assim. Triste, pálida, sem cor.

Tinha trinta e seis anos. Não conheci quem quisesse comigo compartilhar uma família. Perdi a chance de ser mãe. Os meus, todos se foram cedo e, sozinha, envelheci. Escaparam-me a razão e a vontade de ser. E minha existência incolor começou a pedir insistentemente o vermelho do sangue. Obedeci. Meus pulsos ainda ardiam quando acordei, muito longe de casa. Os vizinhos se apavoraram. Pensaram que eu estivesse louca.

Mas eu não temia os mortos – que me lembre, nunca temi. Ao contrário, identificava-me com eles, sentia um carinho cúmplice, quente e fraterno. Eu queria essa proximidade. Eram eles que me protegiam da escuridão noturna, quando os pesadelos visitavam os dementes. Eram os gritos que me aterrorizavam. Os loucos embarcavam em seus sonhos ruins com a intensidade da razão que nunca tiveram.

Um deles - acho que por esse motivo - não dormia. Varava a penumbra iluminado de velas equilibradas, que traçavam em seu rosto o aspecto da alma atormentada. Eu sempre o via sair. Sumia, arrastando suas correntes pelas trevas; só voltava quase ao amanhecer. E assim, amante dos fantasmas como eu, passei a amá-lo também.

Soube que tínhamos a mesma idade. A princípio, lembro-me bem, pareceu-me apenas mais um espectro, como todos os outros, vagando pelos corredores desbotados. Mas em pouco reparei melhor: o homem trazia no corpo a marca dos pigmentos criadores. Mãos, calças, casaco, chapéu. Às vezes até a barba exibia um respingo insólito. Ele era um pintor! Cerúleo, Cádmio, Cobalto, Ocre, Nápoles, Carmim. As tintas denunciavam o ofício e o faziam cheirar forte por isso; o fedor de Saturno a gotejar veneno em suas idéias.

Cheguei a ouvir cochichos de que era perigoso. Vez ou outra, jorravam de seu olhar ácido uns espasmos de violência incontida, explosões da galáxia distante que só ele conhecia. Eu sei. Os tentáculos de luz das estrelas queriam agarrá-lo e levá-lo para o outro mundo. Mas tinha medo de ir. Gritava e se contorcia em dores, no desespero da dúvida. Dentro de minhas próprias dúvidas, observava de longe o lamento das matizes vivas.

O que mais me intrigava, porém, é que o homem estranho se abandonava todos os dias diante de um ponto fixo do jardim morto e ficava lá, por incontáveis horas de sol e vento, sentado num banco duro de ferro, admirando o nada. Deleitava-se na expressão do solo nu, levantava as mãos e pintava uma tela invisível, como se estivesse enxergando contornos no vazio. E se mostrava assim, em êxtase, por tudo o que os outros não podiam ver. Ele, tão estranho quanto eu, pensei.

Até que, num dia de manhã luminosa, levantei-me mais cedo que todos. Foi o sol que me despertou e me tomou pela mão até o ar fresco lá fora. Respirei muito fundo e senti o prazer das batidas de meu coração, mostrando-me que estava viva. Foi quando, à distância, percebi algo diferente.

Em frente ao banco de ferro, as íris irrompiam cachos e botões. Não podia acreditar naquilo. Até ontem, o que existia era o terreno puro, sem cuidado, desfalecido. Agora, mil folhas polpudas espichavam seus bracinhos como que espreguiçando, acordadas para o dia e para a luz. Tons de violeta e azul, com miolos amarelos, flores cheias avançavam em pétalas para dentro de minhas pupilas incrédulas. Sentei-me e fiquei assim, levada pelo fascínio de um jardim recém-nascido, imaginando se, o tempo todo, ele não estivera ali, diante de mim.

- Você está vendo aquela flor branca?

Nunca tinha ouvido uma voz tão serena. Havia sim, uma única flor branca, solitária, entre todas aquelas cores. Senti-me feliz. A lembrança dos urros insensatos daquele homem dissiparam-se para sempre no entremeio das nuvens poucas do céu.

- Sim.

Uma revoada negra atravessou o pátio do hospício.

- Aquela flor branca sou eu.

Fiquei a admirar a solidão de um entre tantos iguais. Pela primeira vez, o artista colocou em mim aqueles olhos singularmente tristes:

- Você acha que o jardim de íris existe de verdade?

E eu respondi, com as íris brilhando:

- Não, Vincent. Acho que não.

4 de setembro de 2007

toccata e fuga

No estribilho...
O estribo levantou o martelinho,
Que bateu na bigorna,
(Feliz)

Tocada da música,
Toquei as notas mais altas
Com minhas mãos frias.
(Toco pelo calor que arrebata a pauta)

Fugi quando não mais podia
E na fuga,
Estilhacei os tímpanos.
(Fujo do compasso que abomina a letra)

E, sozinha no tempo, no vácuo e no amor,
Com a concha de meus ouvidos cegos da vida,
Antevi o próximo acorde.
(Mas nem os fantasmas se lembrariam de mim)