4 de abril de 2008

sivuca e eu

O sol estava forte demais. No auge da seca brasiliense, flagelava os infelizes que precisavam chegar ao trabalho à uma da tarde, como eu. Para somar aos prejuízos, aquele congestionamento genuíno, precursor dos muitos que existem hoje na cidade. Nessa época, era chefe de reportagem na TV Bandeirantes. A minha ansiedade vivia os píncaros de sua glória e pedia bis.

O carro era mais que um forno para essa laia a qual pertenço, dos indivíduos praticamente desprovidos de melanina. O estacionamento em frente ao prédio, no Setor Comercial Sul, já estava completamente lotado desde muito cedo. E eu, atrasada como nunca.

Antônio, o flanelinha camarada, viu meu carro lá de longe. Engraçado é que ninguém chamava o cara de Toninho. "Ô, dôtora! Tiro um aqui, que já sei que a senhora sai tarde!" Isso era uma senha. Significava que eu iria morrer nuns dez reais pela gentileza. "Valeu. Na volta a gente acerta." Lá de longe onde estava e ficou, ele acenou para mim, como sempre. "Mafioso..."

Subi as escadas até o hall vazio do térreo. Suada, cheia de pastas e bolsas, acho que meio descabelada também, arquejando feito um cão raivoso, não sei se de um cansaço premonitório da semana que viria ou de inconformismo por ficar refém do Antônio toda vez que me atrasava. O elevador ainda estava parado no quinto andar.

Conferi as medidas no espelho escuro enquanto esperava. “Isso aqui já foi menor”. Ajeitei um pouco as mechas ruivas, indomáveis, que já chegavam à cintura. Vi as horas e aproveitei para fulminar o relógio num olhar ácido sulfuroso. "Tou frita. Já devia ter despachado as equipes há muito tempo." Estava nesses pensamentos jogados à toa quando ele chegou.

Devia ter um metro e meio pelo menos. Um cabelão comprido e claro, que não sabia dizer se era loiro ou branco, amarrado num rabo de cavalo. Usava umas sandálias de couro, uns óculos de lentes grossas, uma camisa colorida de turista americano. Parou ao meu lado, diante do elevador, e ficou olhando pra mim com os cantos da boca em curva ascendente.

Eu também fiquei olhando pra ele. Só havia os dois, seres sobrenaturais, ali naquele hall; era sobrenatural que nos encarássemos fixamente, com predisposta simpatia. Não é todo dia que ocorre um alinhamento planetário desse calibre. De meu mirante particular - creio que nesse dia com um metro e noventa e três devido ao salto -, não conseguia despregar a atenção da criatura minúscula e alva, que retribuía da mesma forma. "Que cara mais esquisito. Parece o Sivuca"...

Quando o elevador finalmente chegou, entramos juntos. Apertamos o mesmo andar. Quase os dedos indicadores um do outro. “ET phone home”. Nos reconhecemos. Sem dizer uma palavra, mas com um sorriso querendo nascer gargalhada, continuamos nosso diálogo telepático de extraterrestres de mundos distantes.

Um cavalo marinho passou galopando. Saci Pererê apertou todos os andares, eu acho. Gnomos e elfos flutuavam entre as luzes e sombras. Uns tilintares e reco-recos espirituais ecoaram no espaço mínimo.

O elevador parou no nosso andar. Descemos. Ele não agüentou e me estendeu a mão. Eu lhe dei a minha, agora com a alegria da sonoridade real que tanto esperei ouvir nesses infinitos minutos. "Muito prazer! Meu nome é Hermeto Pascoal."

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