18 de janeiro de 2008

a necessidade da graça

Eu era uma menina - nada pequenina - que queria ser bailarina.

De tanto pedir, insistir, chorar, implorar, rastejar, querer com toda a força, minha mãe resolveu, mesmo com sacrifício, me matricular na academia de balé. Foram apenas seis meses.

Afinal, poderia ser importante para a minha vida futura essa tentativa de contornar a inata falta de graça. Não adiantou muito. Eu já era grande, onze anos completos, enquanto as outras meninas dessa idade iam lá pelos níveis avançados de sapatilha de ponta. Eu decorava os compassos, as posições e seus nomes, mas ficava sempre dura demais, naquela rigidez própria de quem nunca se atreveu. Se bem que os óculos de lentes grossas também não ajudavam.

Num dia de chuva forte que me pegou desprevenida, eu, que ia para a aula de ônibus, fiquei ilhada ali, de sacolinha, meia-calça branca e collant rosa, sentada na porta da academia. Foi quando apareceu na minha frente, de guarda-chuva na mão, o marido da dona. Uma vez havia ouvido alguém dizer que ele era um artista de verdade, consagrado e reverenciado, apesar de eu nunca antes tê-lo visto.

Sorridente, muito branco, uns olhinhos amendoados, achou graça de mim – a graça!

“Tem medo de água, gato escaldado?”

Agora eu é que achava graça dele.

“Vamos que eu levo você de carro. Não vai se molhar não!”

Fui com a família: junto a mulher, ex-bailarina, e o filho pianista. Coubemos muito bem, todos dentro do fusca que ele mesmo dirigia. Colocaram-me no banco da frente e a conversa-quase-monólogo continuou.

“Você dança há muito tempo? E os óculos não atrapalham? Pode ser que óculos atrapalhem uma bailarina, não acha?” E ria.

Prestando uma atenção danada, eu balançava a cabeça, concordava, ria com ele, e me esforçava como nunca para ser graciosa.

“O senhor é artista?”

“Todo mundo é... Você também! A minha arte é a música. Gosta?”

Assenti e ele começou a cantarolar baixinho e gesticular com vigor, olhando pra mim de vez em quando. Não entendi muito bem, mas foi como um encanto: me desprendi do mundo nos movimentos e na melodia. Num instante chegamos a minha casa.

“Pronto, está entregue. Foi um prazer conhecê-la, senhorita bailarina.”

Era a primeira vez que alguém me chamava de bailarina. Sorri e fui andando em direção ao prédio, pés leves e mãozinhas curvadas.

Eu não sabia direito o valor daquele homem. Mas tinha percebido a existência da graça! Nas palavras, nas brincadeiras e nos gestos, que ele me mostrou brevemente, em suas várias manifestações, no caminho de casa, dentro daquele fusquinha. Nunca mais esqueci.

Ele era o maestro Cláudio Santoro.

(Essa cena ocorreu de verdade, no comecinho da década de oitenta. N. da A.)

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